sexta-feira, 19 de outubro de 2012

RUMO À CACHOEIRA (*)

Texto de Hélio Pennafort

A pequena lancha de alumínio, empurrada por um motor de popa de 25hp, sobe o rio Oiapoque em direção às cachoeiras. A forte neblina matinal, uma das gostosuras climáticas da região, já havia dissipado quando avistamos o “Pede Passagem”, apenas um estirão depois que deixamos para trás a Ponta do Cheiroso, extremo da cidade para o lado de cima do rio. Nesse ponto da margem, contam os antigos, remadores solitários que passavam por ali altas horas da noite ouviram vozes vindas das canaranas ou do bambuzal suplicando por uma passagem na canoa. Para onde, ninguém sabe. No dia seguinte, em rodas de cana, os caboclos comentavam amedrontados que ouviam apenas: “Me dê uma passagem! Me dê uma passagem!” Arrepiados, tratavam de remar até os limites de suas residências. E verificavam que a medida que o lugar ia se afastando as vozes iam sumindo.

Marcando o meio da viagem fluvial entre a cidade de Oiapoque e a Vila de Clevelândia do Norte, a ilha Barbosa é outro destaque na geografia da fronteira. Entre essa ilha e o lado da Guiana tem um imenso pedregulho que torna a viagem em motor de popa algo perigosa quando a maré está seca. Pelo lado brasileiro, a ilha se defronta com o Pontanarry, um dos maiores afluentes do Oiapoque – e um dos mais bonitos também – cheio de praias e recantos exóticos próprios para campings, piquenique ou farras aquáticas.

Clevelândia do Norte também fica no caminho das cachoeiras. Vista no meio do rio, a simpática vila não tem nada que lembre a fase de horror quando foi transformada em presídio político nos anos 20, recebendo contingentes enormes de deportados das revoluções que aconteciam no Sudeste e no Sul do País. Desacostumados com a região e enfraquecidos pelo mês de viagem que passavam nos porões dos navios, os presos morriam às dúzias, vitimas principalmente pela malária e problemas gástricos. Mas essa fase não durou mais que cinco anos. Clevelândia teve um papel importantíssimo na colonização da fronteira, sobretudo depois que passou a ser ocupada por unidades do Exército, antes mesmo da criação doo município de Oiapoque. De lá a gente já enxerga o início do trecho encachoeirado do rio

Para alcançar a primeira e imponente cachoeira – Grand Roche – fizemos o bordejo pelo Marripá, pequeno porto pelo lado francês. Serve para os canoeiros transportarem suas cargas por terras para um local acima das grandes corredeiras. Que são ultrapassadas com as canoas vazias, sem perigo de alagação. Um pequeno amontoado de terra cheio de arbustos, distante 50 metros da margem francesa, é a ilha dos namorados, refúgios dos casais que escapam da aglomeração dos banhistas nas movimentadas manhas domingueiras. O barulho da cachoeira é muito grande.

Grand Roche realmente é uma pedra enorme. Atravessa o Oiapoque de margem a margem, com alguns pequenos vãos para a passagem das canoas que se dirigem aos Cricou, Marupi, Camopi, e outros lugares rio acima. A predominância de nomes franceses a esses rios e a essas cachoeiras é devida a indiscutível influência dos guianenses na colonização da gleba oiapoquense. Passando ao largo, você imagina ser impossível uma atracação no meio daquela rebordosa. É bonita e barulhenta a queda d’água. São bonitas também as espumas que se desgrudam do remanso e descem o rio devagarinho até se desmilinguirem quando encontram alguma pedra de fora ou um pedaço de pau boiando. Com muita habilidade, demonstrando efetivamente conhecer o ofício, o nosso motorista guiou a pequena lancha de alumínio por entre corredeiras e pedras até encostar na ilharga de uma das pancadas da cachoeira. Apontou um caminho por onde descemos. E, surpresa! Não é que em cima de um dos maiores lajedos da cachoeira existe um bar com tudo que um biriteiro necessita em tão distantes grimpas? Mais surpresa ainda, o dono do bar, o Miguel Ceará – que nasceu na Paraíba – por ter construído o seu estabelecimento no ponto mais estratégico da cachoeira, exatamente no meio do rio, passou a ser uma espécie de guardião do Grand Roche, por solicitação informal das autoridades francesas e brasileiras. “De vez em quando vem um gendarme (polícia francesa) aqui e pergunta se está tudo normal. Até helicóptero de Cayenne já desceu aqui. Foi bem ali, em cima daquela pedra” – aponta para um rochedo retangular. Mariana Nascimento, da TV-Equatorial, faz uma entrevista com o Miguel Ceará e se impressiona com a saga desse nordestino que largou a aridez do sertão, para viver, literalmente, em cima das águas do Oiapoque. O bar é típico de área fronteiriça. Você pode beber de Brahma à Spalthaller passando pela Antártica e Kronnenbourg. Mais do que evidente que não podia faltar a cachaça nacional nem o tafiá guianês. Afinal, pelo bar do Miguel passa gente de um lado e do outro, cada qual com seus gostos preferenciais.

A nossa vontade era prosseguir a viagem em direção às cachoeiras Sikiny, Papacoarrá e Couleve. Só que o tempo que nos cederam para essa jornada foi pequeno. Mas antes de voltar ainda deu para um banho na Praia do João Caboclo, com suas areias limpas e seus bosques maravilhosos. Dali a gente tem uma visão mais nítida da imponência do Grand Roche. E dá também para sentir o quanto a natureza é generosa nestas brelbas oiapoquenses tão solitárias e distantes. Guardadas, no entanto, com muito amor por pessoas como o Miguel Ceará. Sucesso do creôlo Fefé. Para quem nunca ouviu falar, muchê Fefé também tinha uma venda bem pegada ao porto do Marripá, isso há anos atrás, onde os canoeiros se encontravam para contar suas aventuras por entre as pancadas das cachoeiras, lógico que fantasiadas pelo calor do tafiá ou da cachaça que naquela época chegava de Abaetetuba.

(*) Publicado no Jornal do Amapá – Nº 323. Macapá, 17 de novembro de 1991.

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