quarta-feira, 17 de outubro de 2012

GALO CEGO

Conto de Paulo Tarso Barros

EXIF_IMGNão há uma versão exata, embora se tenha buscado nos arquivos dos raros jornais do bairro, onde se registravam alguns fatos de certa relevância – e outros nem tanto, de como Juracy dos Santos perdeu um dos olhos. Mas ganhou o infame apelido de Galo Cego, que o acompanhou durante boa parte da vida, até a sua morte, em janeiro de 2004, aos sessenta e sete anos, de um ataque do coração. Quem o viu morrer - uma garota de 11 anos que estava ao seu lado, no hospital, garante que ele deu um grito medonho antes do desenlace. Logo a notícia se espalhou pelo bairro: o Galo Cego Morreu, comentavam as pessoas, já acostumadas com as respostas rimadas e indecorosos que ele repetia para cada cretino que o chamasse pela alcunha galinácea, principalmente a molecada, os vadios e outros cachaceiros que perambulavam pelas ruas.

- Ei, Galo Cego!- gritavam os moleques.

- Tua mãe no meu prego, filho da puta, vagabundo, veado, fresco! Vai procurar um serviço, vai cavar um poço! – respondia, aporrinhado, seu Juracy.

Ou então esta outra rima, também nada social:

- Ei, Galo Cego!

- Galo Cego morreu; quem come a tua mãe sou eu!

Galo Cego comprava bastante cachaça – principalmente aqueles recipientes pequenos, de trezentos mililitros. Muitas vezes, para impedi-lo de tomar a bebida, os vizinhos aguardavam que ele dormisse, o que geralmente fazia na calçada em frente à casa de sua filha. Então derramavam o líquido, substituído por água. Quando ele acordava, goela seca, trêmulo, ávido pela aguardente, dava uma golada e, descobrindo a troca, abria seu obsceno dicionário de palavrões:

- Quem foi o ladrão, o safado, o veado, o corno, o vagabundo, o desgraçado, o miserável, o sacana que roubou a minha cachaça? Tomara que um trem passe por cima e que fique só o farelo desse vadio! Vai roubar a tua mãe, aquela frouxa!

Ao encontrar uma mulher na rua, ia logo fazendo propostas licenciosas e falando gracejos. Tinha o costume de bater no seu pênis e dizer: “Sossega, sossega, gigante! Fica calmo que ainda não tá na hora de brincar!” Quando lhe diziam: “Mas isso não funciona mais”, ele retrucava: “Aqui é só triscar que o bicho levanta! Por isso que ultimamente eu nem durmo mais em rede, que fica toda furada: o bicho endurece e deixa tudo furado. Nem precisa de Vinagre” – era assim que ele denominava o medicamento Viagra, usado para disfunção erétil. Se a mulher lhe dizia poucas e boas por causa das pilhérias, ele logo retrucava cheio de sarcasmo: “É a apertada, essa aí. Pode colocar uma pica de elefante que ela nem sente, nem faz cócegas! Deus me defenda de uma quenga dessas, era só pra me dar raiva e doença!”

Era um pândego o Galo Cego, e tão sem-vergonha que chegou a ludibriar um jovem policial militar, a quem se dirigiu, no centro de Macapá, dizendo-se “perdido” e sem saber retornar, fazendo-o trazê-lo até a casa, ensinando-lhe o caminho com riqueza de detalhes, para vergonha da família. Mas quando viajou a São Paulo em vista a uma das filhas, acabou realmente perdido na metrópole, depois de pegar um ônibus e cochilar, completamente alcoolizado. Lá, entretanto, não encontrou nenhum salvador da pátria e deu trabalho para a filha, que já estava desesperada com o sumiço do velho.

Quando morava no interior do Pará, num povoado perto da ilha de Marajó, Galo Cego vivia bem, era comerciante, dono de barco, usava relógio folheado a ouro e fazia viagens para Belém regularmente, onde se divertia nos prostíbulos e bebia boa quantidade de cachaça. Os moradores, quando sabiam que ele estava de partida para a capital paraense, vinham fazer suas encomendas. Como ele não sabia escrever, chamava um empregado e mandava anotar os pedidos num caderno: lampiões, machados, defumadores, rádios, terçados, espingardas, mantimentos, remédios, panelas, roupas, tecidos etc. Os moradores davam o dinheiro e lá ia o Galo Cego, de roupa branca, chapéu de primeira, óculos escuros. Quinze ou vinte dias depois ele retornava e o povo vinha atrás dos pedidos.

- Seu Juracy, cadê a minha encomenda?

- Eu comprei um outro barco, mas só vai chegar daqui a quinze dias. Aí tua encomenda também vem – justificava-se ele aos ribeirinhos. – Pode ficar sossegado que o barco vem tinindo de mercadoria lá da capital – garantia. Mas os dias se passavam e nada de barco novo, nada dos pedidos. É que o Galo, em Belém, como já dissemos anteriormente, caía na gandaia: farras, mulheres - e gastava todo o dinheiro destinado às compras. E tem gente de cabeça branca, até hoje, aguardando a nova embarcação e os pedidos...

O Galo Cego foi casado durante muitos anos e deixou numerosa prole. Depois que se separou, passou a morar nas casas dos filhos. Estes, certa época, juntamente com os genros, resolveram mandar construir uma casa para o velho. E foram escolher justamente uma área de palafitas. Reuniram o material: telhas, pregos e madeira e fizeram um mutirão para erguer o pequeno barraco. Depois que terminaram o serviço, um dos genros, de nome Ari, perguntou se o Galo Cego não ia pagar o Zé – justamente o atual marido de sua ex-mulher. Ele, gaiato, respondeu imediatamente:

- Pagar uma merda dessa? Eu já dei foi a minha mulher pra ele, esse corno. Só que ele é fresco e não fez nenhum filho. Parece até que é capado o filho duma égua. Eu fiz oito filhos, e nenhum é veado ou puta, pois essas “raças”, graças a Deus, até hoje não apareceram na minha família.

Também ficou registrada na memória dos amigos e vizinhos uma cena que ocorreu certa madrugada, quando o Galo tinha que viajar para Belém – desta feita iria de avião, pela antiga Cruzeiro do Sul. O carro de um parente, que o levaria para o aeroporto, enguiçou e não houve jeito de funcionar. O motorista lhe disse:

- Seu Juracy, se eu arranjasse um alicate botaria esse motor pra funcionar.

- E onde nós vamos arranjar a praga de um alicate em plena quatro horas da manhã? - quis saber o Galo, já agoniado, pois estava quase na hora de o avião decolar.

- Seu vizinho ali tem, mas eu mesmo não tenho coragem de bater na porta da casa dele de madrugada. Deus me livre; ele é muito ignorante.

- Ignorante com ignorante, doido com doido vamos ver quem ganha – exclamou o Galo, que partiu para a casa do vizinho.

E só faltou derrubar a porta do velho Matos, que gritou, colérico, lá de dentro do quarto:

- Quem é o maluco que não tem o que fazer e vem perturbar o sossego da gente? Não se respeita mais uma casa de família!

- É o Galo que tá batendo, Matos... Me diz uma coisa: você tem um alicate pra me emprestar?

- Ora, seu filho duma égua, você vem me acordar só pra pedir um alicate? Pois eu tenho alicate, chave de fenda, martelo, talhadeira e até carro de mão porque eu compro e não faço como você, que gasta seu dinheiro todo com cachaça...

- Pois pega teu alicate e toda a caixa de ferramenta e mete naquele lugar, seu filho duma capivara - retrucou o Galo, irritado.

O Galo perdeu o avião e ficou de mal com o seu vizinho durante muitos anos.

Um dia, depois de ouvir muita reclamação da família, resolveu comprar uma máquina de lavar. Vestiu-se, pegou o dinheiro e foi conversar com uma vendedora para negociar o produto. Depois da escolha, a vendedora lhe ofereceu café e pediu a sua carteira de identidade e o comprovante de endereço.

- Eu não trouxe documento, pois não gosto de mostrar minhas intimidades para os outros. Mas pergunta o que quiser; eu sei de cor.

E disse para a vendedora que seu nome era Juracy Carilho. O endereço forneceu corretamente. Mais tarde, quando o caminhão de entrega chegou, os familiares estranharam o nome, mas como os outros dados estavam corretos, receberam a máquina. Quando seu Juraci chegou e lhe perguntaram por que tinha informado aquele sobrenome estranho, explicou calmamente:

- Ora, Carilho é o parente mais próximo do Caralho! Eu vou bem deixar meu nome em arquivo de loja pra cobrador viver perturbando aqui na minha porta. Por isso eu só compro à vista: nada de crediário de 10 vezes, porque aquilo é só roubalheira! Vão roubar o diabo, não o Galo!

Quando foi comprar motor para uma pequena embarcação, chegou à loja e foi logo perguntando ao funcionário quanto custava uma “merda” dessas – e apontou para um motor da marca Kubota. O vendedor lhe explicou que aquela máquina era uma das melhores, fabricada no Japão, e que não era nenhuma merda. Mas ele foi logo com as suas explicações cretinas:

- Meu filho, a marca do motor não é Kubota? Pois bem, agora me responda com sinceridade: de onde sai a merda? Pelo que eu saiba, e se não mudaram a anatomia dos seres vivos, ainda é daquele lugar...

Quando começou a ter problemas de varizes e má-circulação nas pernas, o médico lhe indicou meias elásticas, mas ele foi taxativo:

- Isso é coisa de fresco, de veado e eu não vou usar. Onde já se viu, na minha idade, o camarada sair de meia apertada nas pernas, parecendo uma quenga da casa da Suerda. Vão logo dizer: o Galo virou gay depois de velho. Deus me defenda. Imaginem a minha cara - que já não é bonita, mas eu não tenho outra nem sei onde enfiar esta...

Por mais que insistissem, ninguém foi capaz de convencê-lo dos benéficos. Morreu e jamais usou as meias.

Um vendedor ambulante, certa manhã de sábado, bateu à sua porta para lhe oferecer alguns produtos, e destacou, dentre as mercadorias, uma enorme panela de pressão.

- Meu filho, eu não sou doido em comprar um “aparelho” desses pra botar na minha casa, junto da minha família, principalmente dos meus netos, que são todos pequenos. A panela mais moderna que eu tenho aqui é de alumínio, dessas feitas em oficina de fundição. Mando fazer comida mesmo é em panela de barro e de ferro. Eu soube de uma história, acontecida nos Estados Unidos – pois tenho uma filha que é casada com americano e vive por lá - de uma senhora que estava cozinhando numa panela parecida com essa aí. A “bicha” explodiu e carregou um filho dela para o espaço e até hoje não se tem notícia do azarado. Deus me defenda! O que eu não esqueço também é o caso do rádio que explodiu. Você ouviu contar? Pois é. Eu era rapazinho novo, morava perto do Marajó, quando vi um rádio pela primeira vez. Era um monte de abestalhado em volta do receptor; gente que vinha de longe, montado em búfalo. Naquele tempo não existia rádio pequenininho. Esse pesava mais de uma arroba e esturrava feito onça. Fiquei de longe, espiando, desconfiado, pois meu pai tinha ouvido dizer que no Japão, logo que chegou rádio naquele país, levaram o aparelho para uma praça e uma multidão veio espiar e escutar. De repente, bum! bum! bum! Foi mesmo que uma bomba atômica e acabou com todo mundo que estava aglomerado por perto. Ainda bem que esse rádio do Marajó não estourou, senão imagina onde iria parar aquela ilha cheia de búfalos?

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