sábado, 6 de outubro de 2012

BORDEJOS E PACIÊNCIA

Texto de Hélio Pennafort

helio_pennafort_Hoje em dia pouco se vê canoa à vela. O motor-de-centro, de pequena, média e grande cavalagem, substituiu de uns tempos pra cá o colorido velame que empurrava essas esguias embarcações pela costa do Norte, desde Belém até Oiapoque, numa época em que o abastecimento do comércio da cidade fronteiriça não contava com a BR – 156 nem com os possantes barcos que agora levam mercadorias para os oiapoquenses. O trecho oceânico de uma viagem Belém/Oiapoque, numa canoa à vela, era coberto em 6/8 dias, dependendo da direção e da intensidade do vento. O vento geral era o que facilitava mais o deslocamento da embarcação porque vinha do oceano para a terra. Enchia a vela, dava boa velocidade e fixava a direção da canoa, no rumo Norte (se ia para o Oiapoque) ou Sul (se voltava para Belém). Quando o vento era terral, quer dizer, quer dizer, soprado da terra para o oceano, em determinados momentos havia a necessidade de bordejos em direção à margem. E se o vento vinha do Norte (ou Sul) tanto poderia favorecer como obrigar o bordejo da canoa. Dependendo pra onde ela ia.

Canoa a vela rústicaViajar numa canoa à vela obriga o cara a um sequencial exercício de paciência. No oceano até que a viagem não é tão monótona. O balanço é constante. E só mesmo uma calmaria dessas que chega a irritar os nervos mais controlados é capaz de deixa a canoa ao léu. Mas é raro isso acontecer no litoral. O vento sempre aparece e seja lá de que direção venha, a canoa se movimenta, sacode, sai do lugar. No rio manso, contudo, se a canoa não estiver a favor da maré e a ventania for vasqueira, se prepare para bordejos infindáveis, que vão de uma margem a outra umas vinte vezes pra você ver passar minguados cem metros da margem. É saco. Por isso, mesmo viagens para lugares vizinhos, leva dois ou três dias para se chegar. Como de Cassiporé a Oiapoque, por exemplo. E isso significa dormir a bordo. Dormir uma ova, passar a noite. A gente inveja os embarcadiços acostumados a pegar no sono de qualquer maneira, sem ligar para a maresia ou posições desconfortáveis. Aos desacostumados, o lugar que ainda pode servir para uma cochilada é debaixo do toldo. Só que ali, amigos, o pitiú revolve o estômago do mais saudável avestruz e a ânsia de vômitos não demora nem um minuto a chegar, mormente se a canoa estiver jogando de um lado para outro numa ponta de arrebentação qualquer. O pitiú, é verdade, só existe em canoa pesqueira, mas ele deixa você numa situação tão problemática que não tem outra alternativa senão procurar urgentemente as lufadas de ar em cima do toldo, refrescando o pulmão com vento geral, terral, nortão ou sulão. Aí o estômago se aquieta também.

vila_sucurijuPara ilustrar essa conversa, vamos recordar um pedaço da viagem que fizemos entre a cidade do Amapá e a Vila do Sucuriju, a bordo da canoa “Graças a Deus”. Primeiro fizemos uma escala na Ilha do Maracá para embarque de uma centena de caranguejos que iriam servir de acompanhamento para a arquideliciosa cachaça que levamos em frasqueira. Horas depois enxergamos a Ilha do Jipioca passar lentamente a boreste. A tranquilidade do mar, naquela hora do crepúsculo dava ao piloto João Mota uma segurança tal que chegou a deixar a cana-de-leme para enrolar o terceiro cigarro do dia. “Nunca vi um embarcadiço franzino, molenga, frouxo” – disse enquanto passava a língua na folha do abade. Prosseguiu com a primeira baforada: “Seja na enchente, na calmaria ou na pororoca, é uma coisa só. Eu me orgulho de ser embarcadiço há vinte e cinco anos e não penso mudar de vida. Não me acostumo mais a viver só de pé enxuto”.

Mota está certo. O homem de barra-a-fora pode ser tudo, menos molenga ou medroso, tantas as provações que passa no convívio com o mar. Às vezes em condições adversas, hostis e mesmo temerosas. Ao contrário do privilegiado tripulante do navio moderno, dotado de radar, radiogoniômetro, ecobatímetro e outros sofisticados instrumentos indicadores de qualquer anormalidade, o embarcadiço carece tão somente dar as mãos à natureza aproveitando tudo que ela pode oferecer, desde as lufadas de vento aos lances das marés. E quando algum desses elementos naturais se ausenta, o embarcadiço apela para o misticismo cultivado há tempos pelos homens do mar.

- Como é, Mota, quando chegamos ao Cabo do Norte?

- Sei não a calmaria está danisca.

- Quer dizer que a gente vai precisar aguardar a enchente para prosseguir?

- Vou esperar mais um instante se o vento não vier, a gente assovia...

E por mais que o esperado vento não soprasse, Mota passou uns cinco minutos assoviando qualquer coisa parecida com valsa. A persistente calmaria, no entanto, fez o piloto desistir e esperar a reponta para prosseguir a viagem. Nesse meio tempo, um dos embarcadiços, com claros sintomas de “desarranjos”, reclamava do cozido de bandeirado consumido no almoço. Dei-lhe dois sonrisal, que tomou rapidamente. Pouco depois, sua resistência acabou. Meio encabulado, pediu que as mulheres fossem todas para debaixo do toldo e se acocorou na falca, segurando firme na ensalsa.

Logo a enchente deu sinal. E com ela, vento suficiente para levar a canoa a muitas milhas dali.

(*) Publicado em A Província do Pará – nº 313 – Macapá, 8 de setembro de 1991

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