quarta-feira, 3 de outubro de 2012

FORTALEZA: MIL-E-UMA UTILIDADES (*)

fortaleza______ (3)Texto de Hélio Pennafort

O monumento já serviu para muitas coisas. De parque gráfico à praça de esportes. De museu histórico a local de festas. De espaço cívico à improvisação de motel. Isso mesmo. Não foram poucos que procuraram o isolamento e a segurança da Fortaleza de São José de Macapá para literalmente aprofundar o relacionamento com a namorada ou curtir uma transa diferente com qualquer desconhecida conquistada na hora. Inclusive corre a lenda de um casal que chegava ao máximo delírio quando o amor era executado na umidade tétrica das masmorras. Lá mesmo, onde os prisioneiros de priscos tempos vagavam acorrentados, aporrinhados, futricados. E vergados sob o tremendo peso do ambiente e da humilhação. Estranha essa compulsão ao sexo entre os paredões enervantes e fedorentos. Só comparável aos que se escondem no cemitério para remelexos e caquiados.

Pelo que dizem os historiadores, a Fortaleza de São José nunca entrou em ação propriamente dita. Seus canhões não deram um tiro sequer contra invasores que infestavam a costa brasileira. Isso quer dizer que ela cumpriu o objetivo mais importante para o que foi idealizada e construída – amedrontar, inibir os aventureiros e flibusteiros da várias nacionalidades, que andavam por aqui a fim de abocanhar esta povoada gleba extremo-setentrional, assaz cobiçada. E põe assaz nisso.

A sua localização indica que os estrategistas portugueses sabiam exatamente o que estavam fazendo. De onde fica existe um domínio completo da entrada do amazonas de forma que o mecanismo de defesa (e ataque) poderia ser armado e acionado com tranquilidade. Não havia, por exemplo, a possibilidade de o macapaense ser pego de surpresa por qualquer nau aventureira. E como nau alguma apareceu, a Fortaleza de São José só teve ínfimas participações em refregas internas, isso mesmo na condição de presídio. Qualquer confusão que havia por estas bandas, os perdedores invariavelmente eram colocados nas cadeias da Fortaleza. A última vez que usaram como prisão foi durante a revolução de 64. Confundiram o bando de biriteiros e falsos intelectuais como terríveis agentes de Moscou, “comunistas-materialistas-ateus” que só aguardavam uma oportunidadezinha para devorar as indefesas criancinhas que às tardes iam comer pipocas na Praça Veiga Cabral. Tirando as porradas e as dedadas que o bando recebeu, o troço foi levado para o terreno do pândega.

A Fortaleza já abrigou várias repartições públicas. Houve um período e que funcionavam ali o Quartel da Guarda Territorial, o museu, uma sapataria e a impresa oficial, quando lá trabalhavam Wilson Senna, Ezequias Assis, Walter Banhos, Cordeiro Gomes e o competente encadernador Mestre Costa. Foi com o Mestre Costa, aliás, que aconteceu um dos episódios mais risíveis daquela fase. O Governador do Território (Pauxy Nunes) enviou à Imprensa Oficial os originais de um relatório que levaria ao Rio de Janeiro para entregar ao Ministro da Justiça (a quem eram subordinados os territórios federais), na expectativa de conseguir recursos para a região. Tinha, portanto que haver esmeros na encadernação para dar maior beleza ao suplicante calhamaço. E ninguém melhor para fazer isso do que Mestre Costa, que recebeu a papelada, colocando-a em cima da mesa, e foi tomar a habitual dose das 11 horas num boteco que tinha perto da Fortaleza. Voltou em seguida para retomar o trabalho e, espantado, não mais encontrou uma mísera lauda da importante documentação. Procurou desesperadamente por tudo quanto era canto. E nada. Mas aí o impressor de plantão se lembrou de um detalhe e avisou ao atarantado mestre: “Ah, seu Costa, logo que o senhor saiu daqui eu vi o Dengoso Infante comendo uns papéis perto da mesa”. Foi o fim. Dengoso Infante era o carneiro mascote da Guarda Territorial, que desfilava garbosamente nas paradas cívicas e era muito estimado pela turma da Imprensa Oficial que lhe dava papel de jornal para merendar, acostumando assim o bicho a frequentar a redação e a oficina.

Entusiasta da Fortaleza de São José, o governador Janary Nunes fazia realizar ali as solenidades cívicas, os desfiles, e mesmo festas populares. Dois desses momentos de puro civismo vividos pela fortaleza foram a chegada dos restos mortais de D. Pedro I e do escritor gaúcho Joaquim Caetano da Silva, que para quem não sabe foi o intelectual que abasteceu de argumentos o Barão do Rio Branco, que este foi defender a anexação das terras do Amapá ao Brasil, acabando a disputa com a França.

Agora, por decisão do governador Annibal Barcellos, a Fortaleza de São José volta a servir de palco para demonstrações de brasilidade e amapaensismo, festejam-se ali as datas mais significativas do calendário nacional e regional. Barcellos anunciou também a disposição do governo do estado em restaurar o monumento e transformá-lo num recanto de entretenimento e cultura e, consequentemente, num ponto de grande atração turística. A população gostou da iniciativa do governador até porque será a maior beneficiada com a reutilização da bissecular Fortaleza de São José.

(*) Publicado em A Província do Pará - nº 340 – Macapá, 15 de março de 1992

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