quarta-feira, 10 de outubro de 2012

AMANTE DE TELEFONE

 

Conto de Ademar Ayres do Amaral (*)

NandoLunetaArmando salta do carro quase correndo para não perder a fila do elevador. Arremete atropelando a velha gorda do sétimo.

-Veja lá como entra!

-Mil desculpas, D. Reginalda!

Quinze minutos pras seis da tarde. O ponteiro do relógio correndo e o elevador desafobado, parando em cada andar. Finalmente, o dele. Empurra a porta e atira-se qual possesso pelo corredor, já arrancando a gravata. Nervoso, na fechadura, entra. Vai deixando no apartamento um rasto de pertences íntimos, ganhando pole position na porta do banheiro com a cueca no pé. Olha o maldito relógio.

-Putz, tenho cinco minutos.

Entra no chuveiro e deixa-se ficar por instantes refrescando o central. Daí a pouco, enrolado na toalha, entra no quarto. Roda, no toca-fita, o Bolero de Ravel e, com todo cuidado, tira de dentro do armário embutido, a potente luneta. Uma preciosidade comprada na Zona Franca de Manaus, que podia até mesmo distinguir, à grande distância, um mosquito disfarçado de mucuim.

Apressa no que pode a armação do tripé, porque o ponteiro já se aproximava da hora combinada. Mira na direção do luxuoso edifício e inicia a contagem: terceiro, quarto... oitavo, nono, décimo andar. Pára. Ajusta a nitidez da imagem e gira com precisão o parafuso do vernier, centralizando o foco na janela do apartamento.

Exatamente às seis horas, nem um minuto a mais nem a menos, a bela figura de mulher entra na lente do aparelho. Tira vagarosamente a roupa, peça por peça, revelando toda sua nudez escultural. Espreguiça-se, põe também uma fita e começa a ginástica rítmica, contorcendo-se e deixando a sensualidade tomar conta do seu corpo.

Pele morena, cabelos lisos e negros, muito mais pra dona que pra menina. Linda de tudo. Bunda de fazer inveja a muita cocotinha musculosa, peito rijo e firme apontando para o sol das manhãs. Levada à exaustão depois da demorada ginástica, joga-se na cama pingando suor e vira o belo traseiro na direção da janela. Armando chega no zoom e apanha o detalhe mais de perto. Sem despregar o olho, apanha o telefone estrategicamente colocado e disca. Vê Salete levar a mão preguiçosa e atender.

-Armando...

-Alô, meu tesão!

Fazia três meses essa cerimônia. Armando beirava os quarenta e cinco anos, por aí. Idade que ele sabia disfarçar tanto quanto qualquer mulher nessa fase. Caminhadas na praça, academia três vezes na semana, sauna e vitaminas. Enfim, coroão de não se jogar fora. Funcionário antigo do Banco do Brasil, ganhava o suficiente para ir levando. Transava pouco, imaginava muito. Raramente saía. Vez por outra derrubava uma baiana da madame Dulce. Coisa mecânica, mera troca de óleo. Pagava direitinho. E bem. Na pensão, cliente de primeira com certas regalias. No emprego, era tido como garanhão, alvo de comentários.

-Nada, eu, hoje, só faço aplaudir...- e dava um sorriso meio comprometedor.

-Quê-que é isso, seu Armando, solteiro, grana no bolso... deve comer Belém inteira.

Antes assim, melhor que ser confundido com alguma bichona de meia-idade. A luneta foi a solução que caiu do céu. Com tão poderoso alcance, ele passou a vasculhar a cidade. Levou Belém pra dentro do seu apartamento, da sua solidão. Via de tudo. Cenas de carinho, de desamor, tapas, o diabo. E, há três meses, por acaso, deu de olho na ginástica da Salete.

Um dia, numa bela manhã de sábado, passa na porta do prédio onde a bela morava. Conversa com o porteiro, molha a mão dele e recebe a ficha completa: Salete era casada, séria e honestíssima.

-Bote honesta nisso, doutor!

-D.Salete é a melhor mulher de Belém - comentou o moleque lavador de carro, que ouvia a conversa.

Pra chegar no telefone foi um pulo. Depois de um mês não resistiu, ligou.

-D.Salete, meu nome é Armando, a senhora não me conhece, eu...

Contou a verdade sem nada esconder. Derreteu-se mais do que vela em dia de finados. Debulhou-se. Nem deu conta do quê e do quanto falou. No fim, após um silêncio desesperador, ouve:

-Liga amanhã.

Assim, passados três meses, o papo já tinha evoluído pra pura sacanagem. Apenas isso, nada mais.

-Oi, meu tesão!

-Salete, não dá mais, não está dando pra aguentar...

-Bem, vai que eu já tô indo.

-Porra, Salete, não é isso!

Insiste.

-Eu preciso te ver, te pegar...

-Não! Isso não!

-Salete, vê se entende, masturbação na minha...

Ia dizendo a palavra "idade", mas conserta:

-Masturbação não faz bem pra saúde... eu estou há três meses...

-Não posso, Armando, sou mulher honesta!

-Ah, se você visse minha parede... tem pena de mim.

-Não dá, Armando, não vou trair meu marido.

Aí ele foi fatalista:

-Qualquer dia eu ainda cometo uma bobagem.

Reforçou:

-Você sabia? Sabia que paixão mata?

-Armando, eu hein, pára de besteira.

-Juro, ainda me jogo aqui de cima, deixo bilhete!

-Meu Deus, Armando, que drama...

-Pense, um escândalo e você deixa de ser colunável.

Depois de tanto puxa-encolhe, lenga-lenga, a colunável reluta, mas acaba cedendo.

No outro dia, às cinco da tarde, depois de passarem a chuva no motel, o feliz Armando encosta o carro na Batista Campos.

-Eu fico aqui pra não dar na vista - ela diz.

-Amanhã, de novo?

-Nunca mais!

-Ahn? Como é?

-Isso mesmo que você acabou de ouvir. Nunca mais!

Armando agarra-se nela, chora, beija-lhe as mãos, suplicante, como se fossem as do arcebispo.

-Mas por quê? Por quê!?

A resposta inesperada o atingiu como um raio.

-Sabe, Armando, meu marido transa melhor do que você.

-Quer dizer que acabou? Acabou tudo?

-Não, seu bobinho, na cama meu marido é melhor, em compensação...

-Em compensação...

Salete respira fundo.

-Bem... no telefone você é insuperável.

Sai, dá a volta e abaixa-se até a janela do motorista, acaricia-lhe a fronte com ternura, sapeca um longo beijo de despedida e segreda:

-Quero que você seja meu amante de telefone.

Armando está perplexo.

-Amanhã, liga na mesma hora. Estou molhadinha só de pensar...

(*) Ademar Ayres do Amaral é escritor. Publicou “Catalinas & Casarões, Edição do Autor, Belém, 2010)

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