quarta-feira, 10 de outubro de 2012

NINA

Conto de Lulih Rojanski (*)

crianca-tristeUma das mais antigas lembranças da minha vida é a de Nina, a moça que morreu tuberculosa, numa época em que já não se morria de tuberculose. A tísica estava há muito ultrapassada.

Que nome doce era o de Nina... um nome nostálgico para o fantasma da minha infância. Era minha vizinha, mas eu e todas as crianças da vila éramos proibidas de frequentar sua casa. “Vai pegar a doença da Nina”, diziam as mães, então nós passávamos longe de sua porta, entregando Nina à mais mórbida das solidões. Morava só com o pai, e era a criatura mais magra que já pude conhecer. Ameaçava a qualquer momento sucumbir ao peso dos próprios ossos. Sempre arquejante, sempre tossindo. À noite eu perdia o sono pela tosse de Nina, pelo seu sofrimento, pela sua queixa do peito.

No quintal de sua casa estava o maior jambeiro de toda a rua, carregado de frutas que amadureciam, quedavam-se, apodreciam e fertilizavam novamente a terra, e não havia alguém que as comesse. Eu e os outros meninos conseguíamos colher as frutas de todas as árvores da vizinhança, e o verdadeiro sentido de nossas peraltices estava no sabor das goiabas, dos cajus e das mangas “de vez” que apanhávamos sob o protesto de seus donos. Muitas vezes comíamos frutas verdes, mas nunca os jambos maduros da casa de Nina. Era o medo de sua doença que nos afastava das coisas que a ela pertenciam. Entretanto desejávamos as frutas, e a ideia de apanhá-las e comê-las fascinava-nos, da mesma forma que fascinam as outras coisas proibidas. O menino travesso que fui inquietava-se entre o desejo e o medo.

Como a minha casa fosse a mais próxima da casa de Nina, não durou muito até que eu cedesse à tentação de devorar um dos jambos maduros. Numa tarde em que todos descansavam ao silêncio da sesta, pulei o cercado que separava nossas casas e, na certeza de que ninguém me assistia, apanhei sorrateiramente um jambo que o vento acabara de derrubar entre as róseas flores também caídas do jambeiro. Que maciez e que sabor incomparável! Deus do céu... Entre todos os cajus, as goiabas e mangas que roubara, e mesmo entre todos os jambos que comera na vida, aquela era a fruta mais saborosa que já viera a provar. O jambo proibido. O jambo da casa de Nina.

Pouco tempo depois, quando Nina morreu, eu era ainda criança demais para compreender que as frutas de seu jambeiro jamais viriam a me causar qualquer mal, compreender que muito mais que de tuberculose, ela morria de solidão.

Era agora o lamento de seu pai que me atormentava os sonhos, o chorinho de velho atravessando as paredes de meu quarto, trazendo pra mim a lembrança de Nina morta no leito pobre, na mais completa imobilidade. Foi a única morte na minha infância.

Muitos anos então convivi com o fantasma de Nina. Olhava pra mim da janela de sua casa, tácito, como nunca olhara em vida. Na sua liberdade de fantasma, uma liberdade que só pode existir mesmo depois da morte, percorria silencioso a minha casa, desde o porão onde eu brincava, atravessava a cozinha e se acomodava junto ao calor confortável de nosso fogão à lenha, entrava em meu quarto e me assistia adormecer. Todas as tardes se sentava sobre as flores caídas do jambeiro e me olhava longamente. Eu, que sempre havia sentido medo de Nina, de sua tosse e suor, de sua queixa noturna, numa vim a sentir medo de seu inócuo fantasma. Os fantasmas que me assustariam viriam mais tarde, povoar minha vida. Nina era muito mais uma visão da minha culpa, dos conflitos de minha consciência infante. Ela cobrava, com sua presença, a companhia que não teve, e eu tremia de compaixão por sua alma, na sua absoluta eternidade.

Numa noite, em horas já avançadas, voltando de um passeio pela mão de um adulto, atravessei o vasto quintal da casa tropeçando em meus próprios pés. A escuridão só não era completa porque havia lua e das frestas da casa de tábuas emanava a tímida luz dos lampiões. O porão da casa possuía quatro janelinhas e, quando passamos, em cada uma delas vislumbrei um rosto. Fixando um olhar, pude ver melhor o rosto de Nina entre outros três, e eu o distinguia porque me acostumara a ele em tanto tempo de convivência. Sabia que Nina estava feliz agora, embora seu rosto guardasse a mesma falta de expressão que possuem todos os fantasmas. Havia encontrado companhia para a sua eternidade. Acabava a sua solidão e era a minha que começava. Foi-se ela embora de minha vida, libertando-me de todas as culpas e deixando lugar a outros fantasmas, muito mais assustadores. Nunca mais um fantasma amigo.

Ainda hoje sonho com Nina, com a amarga solidão de seus dias entre nós. Ainda hoje penso em Nina, no jambeiro, na infância, na vida, e mais ainda na morte.

(*) Lulih Rojanski nasceu em Dois Vizinhos, no Estado do Paraná. Vive há 30 anos na Amazônia, há 26 em Macapá, onde iniciou seu trabalho literário.

É professora de literatura, formada na primeira turma de Letras da Universidade Federal do Amapá.

Nina é seu primeiro conto publicado em livro, 1994, vencedor do concurso literário nacional, promovido anualmente pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo, de são Paulo.

É vencedora também do concurso da mesma fundação, 1996, com o conto Preâmbulo das Horas. Em 1997, foi premiada com o conto Margaridas para Amália.

Publicou o livro de crônicas Lugar da Chuva em 2001, e Abilash – conto da Amazônia em 2010.

P.S - Seu livro “Abilash” foi selecionado como leitura obrigatória para o processo seletivo 2013 da UNIFAP

2 comentários:

  1. FERNANDO.DESEJO MUITA PAZ EM SEU CORAÇÃO.
    E LOUVO A ALEGRIA NO MEU QUE AGORA ENCONTRA COM MAIS UM BELO TEXTO DESTA CONTISTA QUE NUNCA VI MAS QUE MUITO LI EM UMA PAGINA VIRTUAL QUE ERA DELA E 'SAIU DO AR'.NESTE MOMENTO EM SUAS PAGINAS LEIO-A COMO AUTORA DESTE CONTO BELO SOBRE A SOLIDÃO SITUAÇÃO SEMPRE PRESENTE NA EXISTENCIA HUMANA.UM TEXTO QUE APROPRIA-SE POETICAMENTE DO TEMA E O DESENVOLVE COM UMA PROSA RICA E BELAS FIGURAS DE LINGUAGEM.
    LJORGE.

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  2. Prezado amigo Luís Jorge. Amanhã deverei postar outro conto dessa autora, que considero uma das melhores do Amapá. Seu texto realmente é muito bom. E aí, poeta? Manda um texto novo. Abs. Fernando

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