quarta-feira, 20 de junho de 2012

O PEIXE É PESCADO E A LITERATURA É COMIDA


            Crônica de Yurgel Caldas

De que a literatura, como expressão artística, serve como deleite, estamos certos, desde Aristóteles, ou melhor, desde Platão com seus vários banquetes onde se enfiavam muitos jovens interessados em aprender coisas referentes às artes, ao comportamento humano, enfim, ao conhecimento do mundo. Platão, já um senhor de idade, gozando de um prestígio ímpar na polis, conseguia arregimentar tudo quanto era tipo de menino disposto de entender de diversos assuntos – talvez aí esteja a origem do termo “entendido”, muito em voga nos dias de hoje não só nos salões de cabeleireiros e chás de madames que não têm muito o que fazer, como também em bares, programas de televisão e porta de escola. Os entendidos já existiam desde a mitologia, cujo próprio Platão – Plat para os íntimos e não eram poucos – trata de dar um refinamento necessário na narrativa sobre a concepção dos andróginos; mas não é exatamente sobre isso que gostaria de me debruçar, sob pena de ser confundido como um desses caras que se enfurnam nas cavernas...
O deleite como uma das funções da literatura retoma o termo latino delectare, que quer dizer “atrair”, “encantar”, por isso a literatura consegue causar um prazer tão íntimo que chega a se aproximar da sensação do gosto culinário, dos afazeres  da boa cozinha, portanto um bom livro pode equivaler  uma boa refeição, e “não deixa de não for”, como diria um fotógrafo distante. Por causar esse tipo de prazer, via tração que se confunde com desejo, a literatura também toca o que se refere ao gozo sexual, ou seja, aos prazeres da carne que passam a ser os do espírito sob o ponto de vista do leitor.
Um breve passeio pelas grandes obras pode nos fazer perceber o quanto essa profusão de sensações pode ser capaz de produzir, ou ainda, a partir dessas sensações, quais os caminhos traçados pelos prazeres da criação literária. A associação inevitável entre comida e literatura se faz presente desde as primeiras histórias do Ocidente, como é o caso das narrativas homéricas, em que o grande herói Odisseus (Ulisses) demora vários anos para retornar a sua terra-natal e cair de vez nos braços de sua amada Penélope. O que pouco ou nada se comenta é sobre os verdadeiros motivos que fizeram com que Ulisses ficasse longe: a guerra de Tróia já tinha terminado há muito tempo, então porque o nosso herói resolveu ficar zanzando por ali, evitando a amada? Bem, dizem que os reais motivos do afastamento de Ulisses foi o fato de ele ter encontrado em uma daquelas ilhas do Mediterrâneo uma escrava que cozinhava como ninguém. Ela fazia pratos nunca provados pelo herói, o que lhe encantou tanto ao ponto de quase esquecer sua amada – aliás, dizem, Penélope não sabia nem fritar um ovo de codorna, daí a recusa de Ulisses ter que tomar café, almoçar e jantar a cômoda feita pela Penélope. O resto da história todo mundo já conhece: Ulisses depois de um idílio gastronômico, retorna, enfim, doze quilos mais gordo, para os seios de sua companheira, não sem antes abrir uma conta no barzinho da esquina, onde o chef preparava um pernil de javali acompanhado de folhas de rúcula de dar água na boca.
Atrelar a literatura ao desejo de comer, com toda a polissemia dessa palavra e mais o que vier, juntamente com a formação do pensamento ocidental – a partir das ideias de Platão, que já são reformulação das de Sócrates, o qual por sua vez, pega alguma coisa também dos pré-socráticos - não é tão absurdo assim, já que hoje, nas grandes cidades brasileiras, voltou aquele hábito de as livrarias terem também um café como um estímulo para a compra e leituras de livros. Tudo em que esse hábito é do século passado, iniciado em Paris, mas em se tratando da nossa cidade, o século passado, nesse sentido, ainda não chegou por aqui. Continuamos famintos de um papel que alimenta corpo e espírito.

2 comentários:

  1. texto um pouco longo, mas valeu... pela lembrança!

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  2. Texto mt bom. Uma crônica para os amigos de Plat, Penélope e Odisseus se deliciarem

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