quarta-feira, 20 de junho de 2012

A MISSIVA (LONGE DOS OLHOS, PERTO DO CORAÇÃO)


Conto de José Edson dos Santos

            Rodigleudo, meu gato, você não está nem aí com o que acontece comigo. Antes de mais nada, um abraço, um beijo e um beliscão no seu traseiro maravilhoso. Eu por aqui vou vivendo como posso, sorumbática e azeda como esses dias intermináveis de outubro. Ficar lamentando a vidinha chata ou a angústia mal digerida que os dias agendam. Pode parecer falta do que fazer ou simplesmente ausência de criatividade. Você aí, curtindo o mar e seus mistérios, a natureza da Oceania que cerca toda sua cidade. Possivelmente assediado por colegiais que não podem ver homem dando sopa que logo ficam jogando charminho no maior descaramento. Talvez tenha visitado seus parentes, jogado bola naquela praça que tem uma igreja antiga. Novidade é que não deve faltar comigo, as coisas andam meio descompensadas, por puro desleixo meu. As coisas também poderiam perceber que quem tem sensibilidade a flor da pele, sofre mais a realidade complexa e contraditória, essa coisa estúpida da política manipuladora, da massificação, da banalização do sentimento. Quando aceito essas situações calada, mais reprimida me sinto. A rotina também tem culpa no cartório. Sem você aqui por perto, um cotidiano fútil sem renovação na paisagem ,aliado ao desespero antissocial de não adaptar-me as amigas medíocres, cria um labirinto onde me anulo totalmente. Não posso me estressar, ou a gente aceita as regras do jogo ou... ou...não sei. Qual a vantagem de saber antecipadamente dos acontecimentos com um oráculo ou uma pitonisa picareta? Será que cria outra expectativa saber os caminhos e os embaraços que a vida nos reserva? Carregar as dores do mundo nas costas parece desfecho de tragédia grega. O mito de Sisífo ou mesmo aquele poema drummondeano que fala da pedra do meio do caminho. A existência vai ficando cada vez mais patética, não tem esse pão de a felicidade bater em sua porta, de sorrir diante das adversidades. A vida dói exatamente para ensinar o principio da catarse, a purgação de nossas mesquinharias, unha encravada incomoda também. Temos que ser o que somos e realizar aquilo que sonhamos com determinação. O inferno é dos outros e é aqui mesmo, você disse certa vez, concordo em gênero, número e grau. A filosofia também desanca nossos paradigmas, mas não quero lhe aborrecer com tanto diletantismo.
            Mudando um pouco de rumo da conversa, outro dia encontrei com o monteiro no shopping, ele me deu de presente um cd, é o balaio do Sampaio, uma coletânea organizada por Sérgio Natureza em uma homenagem póstuma a Sérgio Sampaio. Lembrei de você quando ficava chateado cantarolava “O coração de Deus é feminino/ É a força de toda criação/ capricho do destino, a Mãe da invenção/ o coração de Deus é um criança/que dança entre todos os sexos/É a força do universo, uma eterna canção”. O Lúcio também gostava de ouvir as musicas naquele disco chamado “Eu quero colocar meu bloco na rua”, se lembra da figura do Lúcio vestido com um blusão de reco e calça vermelho-musgo naquela manifestação na praça da republica? Naquela época as coisas fluíam na maior naturalidade. Eu adorava teus cabelos encaracolados e brigava muito com tua tia Zizi que dizia que você ficava parecendo um pederasta. No fundo mesmo era inveja. Ela por não ter se casado tinha uma visão preconceituosa do mundo, eu até entendia seu ponto de vista, mas virava uma arara quando ela falava mal de você. Tia Zizi, arranja um velho e deixa o Rodigleudo em paz, eu lhe recomendava, mas ela nunca entendia meu conselho. Ela virou a maior moralista depois que entrou para a ordem das irmãs consolatas. pelo menos arranjou algo para preencher o seu tempo. O Zezito inventou de criar um perdigueiro que vive cagando a casa. A Bernadete está fazendo cerâmica com aquela minha amiga fanha. Eu morro de rir dele imitando a pobre. Só podia ser artista. Semana que vem vou visitar sua mãe e levar uma torta de camarão que ela gosta muito, com certeza ela vai me contar alguma novidade. Tenho escutado muito o disco do Lenine. Bebi vodca com bloody Mary em doses cavalares. Enfrento assim essa montanha russa da solidão cada vez mais arriada. Eu bem que podia entrar em um curso de alemão para ocupar mais meu tempo, fazer tradução é uma meta que tenho em mente. Já pensou ler Rilke, Brecht, Goethe no original? Vou guardar uma grana para isso. Pensar em você às vezes me dá uma debilidade. Sequei meia jarra de vodca com fanta laranja e sinto uma certa vertigem, é como se você tivesse me carregando em seus braços e eu totalmente tomada da bebida, mergulhando em uma lagoa fria, afogada em mim mesma, com olhar de peixe morto, perguntando: - onde estamos?
            Detesto escrever essas esquisitices, mas é o que sinto derramar compulsivamente. Claro, Rodi, eu tento não complicar, ser sincera sem ser chata Poderia falar mais poesias que faço, mas tenho a estranha sensação de que palavras ocas não lhe conquistam, que o seu momento vai além das minhas inquietações. Sabe de uma coisa? Essa bloody mary  está tomando todo o meu corpo. A noite está começando lá fora e eu sem grande segredo dantes. Podia telefonar, mas tenho medo que minha voz pastosa lhe aborreça mais ainda, fico doida de raiva, mas tenho que me patrulhar, me esforço aos extremos. Vou ficar olhando o teu retrato antigo e ver se descubro a imagem magnética do teu charme em meu estarrecimento sem guarda. Cheguei a conclusão de que tenho outras possibilidades a serem exploradas em seus domínios. Meu delírio mais indolente está agora esverdeado, procure senti-lo daí. Rodi, você é meu mantra, meu guru, minha insanidade. Como posso raciocinar direito em tua ausência? Deixa pra lá. Da próxima vez serei menos prolixa. Um beijão muito louco de saudade para não dizer até logo, adeus, essas coisas piegas demais, se por acasos sorrir ao receber esta, escreve, liga, não deixa a oportunidade passar batida. Renovo o abraço e outro beijo. Tudo de bom para você. Termino aqui. De sua flor do cerrado.
            Kaliandra.

2 comentários:

  1. José Edson dos Santos, Joy Edson, como gosto de chamá-lo, é um dos grandes contistas contemporâneos do país. Lendo-o, ouço suas personagens e sinto os odores dos lugares onde estão, e até suas angústias.

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  2. BOAS TARDES, NOITES, E MANHÃS. ESTE ESPAÇO( FERNANDO CANTO E OUTROS TALENTOS) VAI ACABAR SENDO IMPRESSO.(PALPITE DA PITONISA DE PLANTÃO).
    EM TEMPO:- LER UM CONTO REPLETO DE IMAGENS E DESENROLARES COTIDIANOS, QUE EM CADA UM DOS LEITORES JA HABITOU,OU HABITA. FAZ-ME IMAGINAR TER RECEBIDO EU ESTA CARTA. OU TÊ-LA MANDADO.E COMO ESCREVEU O RAY CUNHA.
    A CRIATIVIDADE DO CONTISTA É DEZ.
    FECHOU!

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