Crônica
de Yurgel Caldas
De que a literatura,
como expressão artística, serve como deleite, estamos certos, desde
Aristóteles, ou melhor, desde Platão com seus vários banquetes onde se enfiavam
muitos jovens interessados em aprender coisas referentes às artes, ao
comportamento humano, enfim, ao conhecimento do mundo. Platão, já um senhor de
idade, gozando de um prestígio ímpar na polis, conseguia arregimentar tudo
quanto era tipo de menino disposto de entender de diversos assuntos – talvez aí
esteja a origem do termo “entendido”, muito em voga nos dias de hoje não só nos
salões de cabeleireiros e chás de madames que não têm muito o que fazer, como
também em bares, programas de televisão e porta de escola. Os entendidos já
existiam desde a mitologia, cujo próprio Platão – Plat para os íntimos e não
eram poucos – trata de dar um refinamento necessário na narrativa sobre a
concepção dos andróginos; mas não é exatamente sobre isso que gostaria de me
debruçar, sob pena de ser confundido como um desses caras que se enfurnam nas
cavernas...
O deleite como uma das funções da literatura retoma o termo latino delectare, que quer dizer “atrair”,
“encantar”, por isso a literatura consegue causar um prazer tão íntimo que
chega a se aproximar da sensação do gosto culinário, dos afazeres da boa cozinha, portanto um bom livro pode
equivaler uma boa refeição, e “não deixa
de não for”, como diria um fotógrafo distante. Por causar esse tipo de prazer,
via tração que se confunde com desejo, a literatura também toca o que se refere
ao gozo sexual, ou seja, aos prazeres da carne que passam a ser os do espírito
sob o ponto de vista do leitor.
Um breve passeio pelas
grandes obras pode nos fazer perceber o quanto essa profusão de sensações pode
ser capaz de produzir, ou ainda, a partir dessas sensações, quais os caminhos
traçados pelos prazeres da criação literária. A associação inevitável entre
comida e literatura se faz presente desde as primeiras histórias do Ocidente,
como é o caso das narrativas homéricas, em que o grande herói Odisseus
(Ulisses) demora vários anos para retornar a sua terra-natal e cair de vez nos
braços de sua amada Penélope. O que pouco ou nada se comenta é sobre os
verdadeiros motivos que fizeram com que Ulisses ficasse longe: a guerra de
Tróia já tinha terminado há muito tempo, então porque o nosso herói resolveu
ficar zanzando por ali, evitando a amada? Bem, dizem que os reais motivos do
afastamento de Ulisses foi o fato de ele ter encontrado em uma daquelas ilhas do
Mediterrâneo uma escrava que cozinhava como ninguém. Ela fazia pratos nunca
provados pelo herói, o que lhe encantou tanto ao ponto de quase esquecer sua
amada – aliás, dizem, Penélope não sabia nem fritar um ovo de codorna, daí a
recusa de Ulisses ter que tomar café, almoçar e jantar a cômoda feita pela
Penélope. O resto da história todo mundo já conhece: Ulisses depois de um
idílio gastronômico, retorna, enfim, doze quilos mais gordo, para os seios de
sua companheira, não sem antes abrir uma conta no barzinho da esquina, onde o chef preparava um pernil de javali
acompanhado de folhas de rúcula de dar água na boca.
Atrelar a literatura ao
desejo de comer, com toda a polissemia dessa palavra e mais o que vier,
juntamente com a formação do pensamento ocidental – a partir das ideias de
Platão, que já são reformulação das de Sócrates, o qual por sua vez, pega
alguma coisa também dos pré-socráticos - não é tão absurdo assim, já que hoje,
nas grandes cidades brasileiras, voltou aquele hábito de as livrarias terem também
um café como um estímulo para a compra e leituras de livros. Tudo em que esse
hábito é do século passado, iniciado em Paris, mas em se tratando da nossa
cidade, o século passado, nesse sentido, ainda não chegou por aqui. Continuamos
famintos de um papel que alimenta corpo e espírito.
texto um pouco longo, mas valeu... pela lembrança!
ResponderExcluirTexto mt bom. Uma crônica para os amigos de Plat, Penélope e Odisseus se deliciarem
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