quinta-feira, 2 de junho de 2011

ADEMAR AMARAL

livro ademar Publico aqui uma crônica e um conto do escritor amazônico Ademar Amaral para o deleite do leitor do blog. Considero o seu “Catalinas e Casarões” um dos mais belos e importantes escritos memoriais que conheço feitos na Amazônia, uma espécie de romance familiar carregado de realismo e beleza construtiva, até pelos extratextos que permeiam as saborosas histórias nele contidas (F.C.).

Ademar Ayres do Amaral nasceu em Óbidos, na casa de número 10 da famosa Rua do Bacuri, nos altos da renomada Farmácia Esculápio do seu avô materno, o boticário português, José Cardoso Ayres. Filho da professora normalista, Ana Ayres do Amaral (a professora Santana) e do fazendeiro Areolino Araújo do Amaral, com dias de nascido foi viver com os pais na fazenda São Braz, no Paraná de D. Rosa, onde passou a sua infância. Lá aprendeu as manhas da pescaria, o amor pela natureza e as primeiras letras na escola estadual comandada por sua mãe. Posteriormente foi morar em Óbidos, com o avô Ayres, e frequentou as escolas particulares das professoras Cora Simões e Glória Corrêa Pinto. Aos 10 anos foi para Santarém estudar por seis anos no Colégio Dom Armando. Em 1964 mudou-se para Belém onde concluiu o segundo grau no colégio Nossa Senhora de Nazaré e prestou vestibular para a Escola de Engenharia da UFPA, diplomando-se engenheiro civil na turma de 1972. Ávido leitor, começou a rascunhar seus primeiros contos e crônicas em 1976. Em 1980 recebeu menção honrosa em concurso literário da Academia Paraense de Letras. Premiado na APL, passou a colaborar com o PQP, um jornal que surgia em Belém aos moldes do Pasquim. Em 1984 publicou seu primeiro livro, A Encomenda e o Deputado. Atualmente é cronista dos jornais A Folha de Óbidos e Uruá-Tapera, além de colaborar no site Portal de Óbidos. Em 2005, recebeu o prêmio Terêncio Porto, na Academia Paraense de Letras, com o livro “Tartarugal” (ainda inédito) e em 2006 ganhou o 1º Lugar no concurso de contos do clube Assembleia Paraense, com Estirão Sem Fim. Ademar Ayres dos Santos lançou Catalinas e Casarões, obra que traça o painel de uma época marcante na história do Baixo Amazonas.

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ENCONTRO COM JACK KEROUAC

Ademar Ayres do Amaral (ademar@amazon.com.br)

Nada de grupos. Não sou e nunca serei gado. (Paulo Francis / O Pasquim, Antologia)

Nos anos 60, já um leitor voraz de Machado de Assis (acho Quincas Borba um dos maiores romances da literatura mundial), escutei muito sobre um tal Jack Kerouac. Para mim, o que falavam era apenas isto: que era um escritor americano maluco e que, ao escrever sobre suas aventuras de andarilho e carona, nas estradas do Tio Sam, acabou se tornando guru de uma geração rebelde que passava ao largo da sociedade dita de consumo. Também chamado de geração beat, esse time encontrou no escriba o catalisador de seus mais íntimos anseios, acabando por desembocar no que ficou conhecido como movimento hippie. Os anos passaram, o movimento hippie foi enfraquecendo e sendo engolido pela mesma sociedade de consumo que ele contestava, e eu acabei esquecendo de Jack Kerouac na poeira do tempo.

Mas, em julho de 2001, eu tirei trinta dias de férias, juntei uns dólares, negociei com a minha esposa (claro, sou bem casado há 35 anos), e me mandei sozinho pra Boston, no Estado de Massachusetts. E por que a escolha de Massachusetts? Ora, porque fica na região dos Estados Unidos conhecida como Nova Inglaterra, é o berço da civilização americana, da guerra pela independência, e Boston, além de uma cidade linda, é cheia de museus fantásticos, sede da famosa Harvard University e do MIT (Massachusetts Institute of Technology), esta tida como a melhor escola de engenharia do planeta. Enfim, um montão de coisas extraordinárias que eu aproveitava para me fartar nos meus fins de semana. Fui morar sem mordomia no grandioso campus da Tufts University, onde tinha aulas de inglês das 8 da manhã às 3 da tarde, e era obrigado a fazer duas coisas que eu sempre detestei na minha vida: lavar roupa e fazer faxina no quarto. Meu cômodo, sem banheiro, media uns dois metros de largura por três metros de comprimento. Tinha uma cama estreita, espaço para pendurar minha roupa, e uma escrivaninha com abajur para preparar um caminhão de exercícios todas as noites. Os banheiros eram limpos, mas coletivos. No meu andar havia dois banheiros femininos e dois masculinos. E durante as férias americanas, são muitos os estudantes do mundo inteiro que se hospedam por lá. Então, não era nada estranho a gente tentar usar um rest room e ouvir o clássico aviso: “It’s busy!”

Na minha turma havia quatro franceses, três italianos, três coreanas, uma israelense, uma alemã (a Frida), um saudita, alguns argentinos, uns colombianos e apenas uma brasileira de Itabira, Minas Gerais. Uma tarde, depois da aula, eu e o grupo dos franceses resolvemos organizar uma pelada entre nós, misturando homens e mulheres, no campo de futebol da Universidade. As meninas toparam, nós dividimos os dois times e eu, que tinha idade para ser pai da galera, pedi, por pura malandragem, para jogar na lateral direita, marcando a alemã na ponta esquerda. Foi a minha desgraça. Mal o jogo começa, uma bola é lançada para a Frida. Ela veio como um bólido na minha direção, passou por mim feita uma bala, e marcou o primeiro gol. Logo em seguida, outro e mais outro, tudo da Frida e pelo meu lado. Cansado do banho e temendo um vexame maior, logo fingi uma contusão e fui servir de juiz o resto do jogo. No fim, conversei com a Frida para saber como ela tinha aprendido a jogar aquele futebol de craque. Ela, sorrindo, me explicou que era juvenil titular do time feminino do Colônia.

Pois bem. A aula que nós mais gostávamos era a do horário da tarde, porque logo tivemos uma natural identificação com o professor. Era um cara jovem, muito aberto e estava fazendo mestrado em antropologia. Ele nos fazia ler e discutir textos de um livro sobre episódios da história americana, principalmente fatos acontecidas naquela região da Nova Inglaterra. Um dia, ele deixou o livro de lado, e nos entregou uma folha de papel, contendo um texto de Jack Kerouac. Também nos disse que o texto foi tirado do livro, On The Road, e que o autor, antes muito criticado pela maneira nova e um tanto bagunçada de escrever, já era tido como um dos maiores da literatura americana. Passamos duas horas lendo e interpretando, e eu logo me interessei em ler o livro, mas o professor me desaconselhou porque o inglês usado era cheio de regionalismos e gírias (slangs), o que tornava a leitura difícil para um não nativo.

Terminado meu período em Boston, viajei de volta ao Brasil com o firme propósito de encontrar o On The Road traduzido para o português, porém minha busca foi infrutífera, porque a única tradução que havia era em espanhol e só na Argentina. Pois em uma das minhas tantas viagens, naquela horinha antes do vôo que eu sempre uso para vasculhar a livraria dos aeroportos (sou tarado em livrarias), eis que dou de cara com On The Road, e outros volumes de Jack Kerouac. Trata-se de uma bem feita edição de bolso, da Editora L&PM POCKET e me custou o preço módico de dez reais. Li o livro num tapa. Nas suas 380 páginas conta a história de dois amigos, Sal Paradise e Dean Moriarty, que saem de carona pela estrada Rota 66, e atravessam os Estados Unidos desde New Jersey até a Califórnia. O livro traz ainda uma mini-biografia de Jack Kerouac e um excelente comentário de Eduardo Bueno. O volume foi escrito em 1947, sendo recusado seguidamente em inúmeras editoras, até ser aceito e publicado dez anos depois, em 1957. Apenas como curiosidade, vejam este interessante trecho da página 151: “Para se conservar aquecido, Dean usava um suéter enrolado nas orelhas. Disse que éramos um bando de árabes chegando para explodir Nova York”. Vejam bem: isso foi escrito em 1947. Não parece previsão do 11 de setembro?

Como nos relata Eduardo Bueno no seu excelente comentário, On The Road foi a glória e a danação de Jack Kerouac. Ele acabou aos 47 anos, solitário e entupido de drogas, porém sua obra causou uma verdadeira revolução cultural no mundo. O jovem roqueiro, Bob Dylan, fugiu de casa depois de ler o livro; nosso cineasta, Hector Babenco, também. E há os que afirmam que, sem Jack Kerouac, os Beatles não teriam acontecido.

Eu ainda não fugi de casa, mas achei o livro um grande barato. Não me arrependo da feliz descoberta que fiz do autor, quase que por acidente, naquela distante e inesquecível aula de inglês, em Boston. Para o meu gosto, e gosto cada um tem o seu, Kerouac pode não ter sido tão bom escritor como foi Trumam Capote, mas era um cara que escrevia diferente, e que virou a literatura americana de ponta-cabeça, como também fizeram o próprio Capote (In Cold Blood), Falkner, e o grande Ernest Hemingway.

EMANCIPAÇÃO

Ademar Ayres do Amaral (ademar@amazon.com.br)

Sexta-feira. Luiza tinha ido embora sem bilhete nem até logo. Acabado, Gusmão assiste da janela as primeiras luzes da cidade. Olha o copo vazio, tremenda, bruta fossa. Entorna mais bebida no copo. O bar da esquina já recebia os primeiros visitantes, homens vindo do trabalho, e tomando uma loura suada antes da esposa. Súbito, do marasmo, é despertado pelo telefone.

-Alô.

Pausa longa, parecendo trote.

-Alô, quem é?

Do outro lado, a voz tremida, ansiosa, quase um sussurro.

-Gusmão, sou eu, a Mary.

Ele sentiu a cabeça estalar. Sintoma normal quando a raiva aflorava. Despejou:

-Maria das Dores?- acentuou o "das Dores".

-Gusmão, pelo amor de Deus...

-Ah, Maria, vê se não enche minha paciência!

O convite vem em forma de súplica.

-Gusmão, eu preciso falar com você.

-Não quero papo, você desencabeçou a Luiza!

-Gusmão, eu estou aqui no Cosanostra, é minha vida que está em jogo, nosso futuro, nosso destino.

-Nosso? Ora, vai à merda! Vida por vida, você já estragou a minha!

Mary começa a chorar.

-Gusmão, vem, por favor, ou você vem ou eu me mato!- e desliga.

Pensativo, Gusmão põe outra dose no copo, reflete, resolve:

-Pois vou. É tempo de dar umas bolachas nessa tal de Mariazinha.

Sai bufando de raiva em pleno rush, levando e devolvendo desaforos. Após várias voltas no quarteirão, finalmente encontra uma vaga pro carro. Entra no Cosanostra e manja o ambiente: casais nas mesas, amigos no balcão jogando conversa fora e tomando chope com música convidativa. Avista Mary, num canto, fumando nervosamente. Senta. Pede dois chopes. Ficava de certo modo desconcertado quando encarava Mary de frente. Mesmo sendo contra as suas idéias de emancipação, nutria por ela um grande desejo carnal, um secreto desejo. E num vestido justo e cheio de decote, Mary estava super tesuda naquela noite. Entrou de sola:

-Fala, Mariazinha!

-Olha o ambiente, Gusmão, não faz escândalo.

-Então fala logo!

Mary toma meia caneca de chope com tira-gosto de coragem.

-É sobre tua separação.

-Onde está minha mulher?

-Em Carajás, na Serra dos Carajás.

E explica com espuma na boca:

-Arranjei emprego pra ela, bem longe...

Gusmão agarra-lhe os pulsos.

-Ainda arrebento contigo!

Mary desaba chorando.

-Gusmão, fiz por nós, por mim, eu te amo, sempre te amei.

E beija as mãos dele com ternura desmedida como se fossem as mãos do arcebispo.

-Afastei ela de ti, será que tu não entendes?

Diante dessa inesperada revelação, a raiva inicial dele foi pras cucuias. E vários outros goles de chope e muitos cigarros, os dois, ali no aconchego do local, chegaram à bendita conclusão que tinham sido feitos um para o outro. Acabaram desesperadamente num luxuoso motel da cidade.

Passada uma semana, no sábado, Gusmão acorda às dez depois de uma tremenda noitada a dois. Tateia ainda sonolento o lado direito da cama, buscando costela no frio do ar condicionado. Toca num corpo nu e macio. Desliza a mão.

-Gusmão...

-Mary, chega aqui, dá uma costelinha.

Ela se enroscou nele e deu não só a costela, deu tudo. Em seguida, felizes e aplaudindo a vida, foram pro chuveiro e tomaram um banho demorado na base do afago. No mesmo instante, em Carajás, a emancipada Luíza levava uma tremenda dura do chefe e já lutava pra sobreviver.

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