Por Ademar Ayres do Amaral
Armando salta do carro quase correndo para não perder a fila do elevador. Arremete atropelando a velha gorda do sétimo.
-Veja lá como entra!
-Mil desculpas, D. Reginalda!
Quinze minutos pras seis da tarde. O ponteiro do relógio correndo e o elevador desafobado, parando em cada andar. Finalmente, o dele. Empurra a porta e atira-se qual possesso pelo corredor, já arrancando a gravata. Nervoso, na fechadura, entra. Vai deixando no apartamento um rasto de pertences íntimos, ganhando pole position na porta do banheiro com a cueca no pé. Olha o maldito relógio.
-Putz, tenho cinco minutos.
Entra no chuveiro e deixa-se ficar por instantes refrescando o central. Daí a pouco, enrolado na toalha, entra no quarto. Roda, no toca-fita, o Bolero de Ravel e, com todo cuidado, tira de dentro do armário embutido, a potente luneta. Uma preciosidade comprada na Zona Franca de Manaus, que podia até mesmo distinguir, à grande distância, um mosquito disfarçado de mucuim.
Apressa no que pode a armação do tripé, porque o ponteiro já se aproximava da hora combinada. Mira na direção do luxuoso edifício e inicia a contagem: terceiro, quarto... oitavo, nono, décimo andar. Pára. Ajusta a nitidez da imagem e gira com precisão o parafuso do vernier, centralizando o foco na janela do apartamento.
Exatamente às seis horas, nem um minuto a mais nem a menos, a bela figura de mulher entra na lente do aparelho. Tira vagarosamente a roupa, peça por peça, revelando toda sua nudez escultural. Espreguiça-se, põe também uma fita e começa a ginástica rítmica, contorcendo-se e deixando a sensualidade tomar conta do seu corpo.
Pele morena, cabelos lisos e negros, muito mais pra dona que pra menina. Linda de tudo. Bunda de fazer inveja a muita cocotinha musculosa, peito rijo e firme apontando para o sol das manhãs. Levada à exaustão depois da demorada ginástica, joga-se na cama pingando suor e vira o belo traseiro na direção da janela. Armando chega no zoom e apanha o detalhe mais de perto. Sem despregar o olho, apanha o telefone estrategicamente colocado e disca. Vê Salete levar a mão preguiçosa e atender.
-Armando...
-Alô, meu tesão!
Fazia três meses essa cerimônia. Armando beirava os quarenta e cinco anos, por aí. Idade que ele sabia disfarçar tanto quanto qualquer mulher nessa fase. Caminhadas na praça, academia três vezes na semana, sauna e vitaminas. Enfim, coroão de não se jogar fora. Funcionário antigo do Banco do Brasil, ganhava o suficiente para ir levando. Transava pouco, imaginava muito. Raramente saía. Vez por outra derrubava uma baiana da madame Dulce, ali na discreta alameda da Sudam. Coisa mecânica, mera troca de óleo. Pagava direitinho. E bem. Na pensão, cliente de primeira com certas regalias. No emprego, era tido como garanhão, alvo de comentários.
-Nada, eu, hoje, só faço aplaudir...- e dava um sorriso meio comprometedor.
-Quê-que é isso, seu Armando, solteiro, grana no bolso... deve comer Belém inteira.
Antes assim, melhor que ser confundido com alguma bichona de meia-idade. A luneta foi a solução que caiu do céu. Com tão poderoso alcance, ele passou a vasculhar a cidade. Levou Belém pra dentro do seu apartamento, da sua solidão. Via de tudo. Cenas de carinho, de desamor, tapas, o diabo. E, há três meses, por acaso, deu de olho na ginástica da Salete.
Um dia, numa bela manhã de sábado, passa na porta do prédio onde a bela morava. Conversa com o porteiro, molha a mão dele e recebe a ficha completa: Salete era casada, séria e honestíssima.
-Bote honesta nisso, doutor!
-D.Salete é a melhor mulher de Belém- comentou o moleque lavador de carro, que ouvia a conversa.
Pra chegar no telefone foi um pulo. Depois de um mês não resistiu, ligou.
-D.Salete, meu nome é Armando, a senhora não me conhece, eu...
Contou a verdade sem nada esconder. Derreteu-se mais do que vela em dia de finados. Debulhou-se. Nem deu conta do quê e do quanto falou. No fim, após um silêncio desesperador, ouve:
-Liga amanhã.
Assim, passados três meses, o papo já tinha evoluído pra pura sacanagem. Apenas isso, nada mais.
-Oi, meu tesão!
-Salete, não dá mais, não está dando pra agüentar...
-Bem, vai que eu já tô indo.
-Porra, Salete, não é isso!
Insiste.
-Eu preciso te ver, te pegar...
-Não! Isso não!
-Salete, vê se entende, masturbação na minha...
Ia dizendo a palavra "idade", mas conserta:
-Masturbação não faz bem pra saúde... eu estou há três meses...
-Não posso, Armando, sou mulher honesta!
-Ah, se você visse minha parede... tem pena de mim.
-Não dá, Armando, não vou trair meu marido.
Aí ele foi fatalista:
-Qualquer dia eu ainda cometo uma bobagem.
Reforçou:
-Você sabia? Sabia que paixão mata?
-Armando, eu hein, pára de besteira.
-Juro, ainda me jogo aqui de cima, deixo bilhete!
-Meu Deus, Armando, que drama...
-Pense, um escândalo e você nunca mais sai na coluna do Isaac Soares.
Depois de tanto puxa-encolhe, lenga-lenga, a colunável reluta, mas acaba cedendo.
No outro dia, às cinco da tarde, depois de passarem a chuva no motel, o feliz Armando encosta o carro na Batista Campos.
-Eu fico aqui pra não dar na vista - ela diz.
-Amanhã, de novo?
-Nunca mais!
-Ahn? Como é?
-Isso mesmo que você acabou de ouvir. Nunca mais!
Armando agarra-se nela, chora, beija-lhe as mãos, suplicante, como se fossem as do arcebispo.
-Mas por quê? Por quê!?
A resposta inesperada o atingiu como um raio.
-Sabe, Armando, meu marido transa melhor do que você.
-Quer dizer que acabou? Acabou tudo?
-Não, seu bobinho, na cama meu marido é melhor, em compensação...
-Em compensação...
Salete respira fundo.
-Bem... no telefone você é insuperável.
Sai, dá a volta e abaixa-se até a janela do carro. Acaricia-lhe a fronte com ternura e sapeca um longo beijo de despedida. Segreda:
-Quero que você seja meu amante de telefone.
Armando está perplexo.
-Amanhã, liga na mesma hora. Estou molhadinha só de pensar...
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