segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O JULGAMENTO

Conto de Alcy Araújo

O juiz entrou com sua toga e sentou-se gravemente na cadeira negra de espaldar alto. Fez-se, então, um silêncio que podia ser cortado com uma faca.

Com a chegada do juiz, aconteceram as coisas mais comuns, já previstas em lei, como inquirição de testemunhas, etc, etc.

O réu, vestido com uma túnica azul, de asas e auréola dourada, parecia não prestar atenção a nada, salvo ao vôo de uma pequena borboleta amarela, que estava na sala há temos imemoriais.

O promotor levantou e fez a acusação, erguendo os braços para o alto. Outras vezes apontava o dedo nicotinado para o réu que olhava a borboleta. O juiz, muito grave, piscava por trás dos óculos. Os jurados fingiam muito interesse, enquanto, às escondidas, comiam pipocas. E quanto mais comiam pipocas, mais pipocas apareciam. Todas as pipocas do mundo estavam ali.

As palavras do promotor cerziam a acusação, saindo lisas e claras. Mas eram absorvida elo candelabro de cristal e desapareciam completamente. Cada qual à medida que escorregavam da barba do orador. Não ficou nenhuma na sala, por mais estranho que pareça. O advogado gordo, que lembrava um pato obeso, comia as folhas de um grosso processo, lentamente, sem pressa, durante todos os dias em que falou o promotor que, ao terminar a sua peça acusatória, tinha a roupa em tiras e os cabelos brancos e compridos.

Então o advogado, com o ventre cheio do processo, se levantou do saco em que estava sentado e falou ..Mas ninguém ouviu a sua voz. Foi um silêncio angustiante. Para quebrar o silencio um velho gritou nas galerias. Aí aconteceram muitas coisas inesperadas. Todo mundo gritou para apagar o silêncio.

O juiz com as listras verdes da toga, aparecendo mais acentuadas e emanando uma certa iridescência, cresceu na cadeira. E bateu com o malho na mesa. Pá-pá-pá! Até que o malho criou asa e saiu pelo forro.

Nem assim cessou a gritaria. O meritíssirno, sem malho, pegou um dos braços amputados que estavam sobre a mesa e começou a bater com ele, até que a mão se deteriorou e os dedos se espalharam entre os jurados e se misturaram com as pipocas e se multiplicaram. Com pouco tempo, havia tanto de pipocas como tanto de dedos. Aí o réu deixou de olhar a borboleta e falou aflito: Parem com isto, pelo amor de Deus!

E todo mundo parou. O juiz viu que nada tinha afazer e esboçou um gesto para o advogado gordo. Ele também fez um gesto, que os jurados fingiram compreender, batendo das vestes os dedos e as pipocas.

A defesa foi feita de modo tranquilo, com o advogado falando em silêncio. Quando muitas luas tinham passado, os jurados se levantaram e se recolheram a uma sala de vidro, para deliberar. De fora, apenas, eram percebidos os seus gestos desesperados, durante dias e noites, em que cresceram os figos da figueira.

Foi preciso que o réu tomasse a deixar de olhar para a borboleta e falasse com a voz cheia de angústia: Vamos terminar com isto, pelo amor de Deus! Muito graves, com as suas roupas pretas, os jurados voltaram. Um deles, que aparentava ter entre sete e nove anos de idade, assumiu a universal postura de líder, e transmitiu o veredito: Culpado!

O teto rachou, no momento em que o jurado-líder pronunciou a palavra fatal e envelheceu quarenta anos. Uma porta se abriu e na moldura apareceu um homem sem braços. Olhou para os presentes, que imediatamente se transformaram em auditório do mutilado. Neste ponto ele bradou, com palavras roucas, que arranhavam a perplexidade geral: Que fizeram dos meus braços? Quem espalhou meus dedos pelo chão e o meu sangue pelos móveis?

Como ninguém respondesse, aproximou-se da mesa do juiz. Mandou que colocasse o braço no lado esquerdo. Já com o braço, pôs-se a juntar os pedaços do outro braço, os dedos e armá-los, como brincam com um quebra-cabeça. Quando o braço ficou inteirinho, com mãos dedos e tudo o mais, ele mesmo o colocou no lado direito. Ajoelhou-se e ergueu as mãos para Cristo, crucificado acima da cabeça do juiz.

Ouviu-se, de mistura com a prece do homem, a pergunta necessária: E agora? Vale ou não vale o veredito?

Vale! Gritaram uns. Não vale! Gritaram outros. Fez-se um tumulto dos diabos. Quando o cansaço de gritar fechou as bocas. O meritíssimo lavrou a sentença. O carrasco se aproximou, passou a corda sobre a' cabeça do condenado no exato momento em que o Cristo desceu da parede tomou pela mão o que ia ser justificado e desceu com ele as escadas que davam para a rua.

Como um serventuário queria varrer as pipocas pelo chão; todos foram embora, para contar lá fora o julgamento.

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