segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

DE AMOR E DE FÉ

Texto de Ângela Nunes

- Eita, que até que enfim nós chegamos!

O paneiro com o pato, o saco com algumas mudas de roupas, chinelo, chapéu de palha e o cigarro compunham o visual que mostrava a barba sem fazer de Zé Alfredo, o romeiro.

A promessa era a causa. Haviam tentado de tudo. Até no 'dotor Arinardo' tinham ido, mas nada. Rezadeiras, mães-de-santo, pau-d'arco, andiroba, com alho e sebo-de-holanda, um santo remédio! -, esfregaço com chifre queimado no peito do menino, ao pôr-do-sol... Nada. Só a Virgem.

Ela, sim, a mãe de todos os ribeirinhos dera jeito no sem jeito, afastara o mal com o poder da fé.

Joana segura o braço do menino que puxa sua saia para não cair

Do barquinho "Nossa Senhora dos Anjos" uma leva de romeiros desembarca. Além da carga de fé, trazem os apetrechos necessários para o almoço tradicional do Círio: pato, tucupi, jambu. O importante, porém, é ver a Santa. É ir junto à Corda, ser içado, comprimido, é não estar fora do maior acontecimento religioso do Brasil, no Segundo Domingo do mês de outubro: o Círio de Nazaré.

Zé Alfredo, Joana e Zeca têm um longo percurso a seguir. Deixam, como amigo feirante no Ver-o-Peso, o bastantes trazido para o almoço depois da procissão.

Seguem direto para a Matriz, em Nazaré. Vão a pé, faz parte da promessa. Ainda são cinco horas da tarde do Sábado, mas precisam estar certos de que o menino conseguirá embarcar no Carro dos Anjos. Ele deverá seguir todo o trajeto com as outras crianças, ou a promessa não terá validade. Uma recaída será fatal.

- Cuidado com as asas, menino!

Não foi fácil conseguir todas as penas brancas, arranjadas pela redondeza e lavadas com carinho. Mas as asas estavam lindas, um trabalho de arte.

- As asa tão 'pai-d'égua'!

- Joana sorri e a família segue. Zeca pára, quer mijar ao pé da mangueira centenária. Outra parada: - um copo d' água-pelo-amor-da- Virgem! Já é noite quando chegam. Decidem que a escadaria da Matriz é um bom lugar par repousar e aguardar a saída da procissão.

- Zé, e se nóis não conseguir pôr o menino com os outros anjinhos?

- Calma, mulher, a Virgem resolve.

Os atropelos, o empurra-empurra, tudo ficou esquecido quando viram o menino no carro, devidamente paramentado. Estava belo e destacava-se dos outros pelo brilho das asas.

- Fique direitinho, meu filho.

Nós vamos lá atrás, na corda. A corda. Outra dificuldade, e das grandes. Mas para quem havia saído da Ilha dos Porcos há cinco dias... Força, Fé e Determinação transformam os dedos calosos do homem nortista em garras ao segurar a Corda. Daqui não saio, nem morto.

Joana segue ao lado, sandália na mão, a imagem da Virgem de Nazaré e um coração de cera, simbolizando a doença de Zeca.

A multidão serpenteava pelas ruas de Belém, imensa sucuri com o ventre inchado por romeiros de todos os cantos, unidos pelo amor à Santa formosa.

"Oh, Virgem mãe amorosa..." Joana canta alto, em êxtase. Embalada pelo foguetório das várias homenagens, quase não sente o asfalto a queimar-1he os pés.

No canto do edifício Manoel Pinto, aconteceu.,. Sem aviso, silencioso, o tumulto começou. Uma onda dentro de outra: jovens não participantes do evento, vindo em sentido' contrário, teimavam em passar. Na confusão a seguir, pessoas desmaiavam, sufocadas pelo aperto e calor. Foi inevitável o empurrão no Carro dos Anjos. Zeca foi projetado longe.

Joana vislumbrou o acontecido. Ajoelhou-se e orou... Por entre lágrimas, viu o milagre. O menino, entre balões coloridos, papel picado e fumaça, muito lentamente, ruflou as asa e voou sobre a multidão.

A contista Ângela Nunes é poetisa e contista. Marajoara de Soure (PA), onde nasceu em 21 de julho de 1956. Vive em Macapá desde os seis anos de idade. É professora de português, literatura, redação e linguística.

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