segunda-feira, 20 de julho de 2009

A MORTE E O ESPANTO



Mircea Eliade conta no seu livro "O conhecimento sagrado de todas as eras" que há quatro tipos de mitos sobre a origem da morte. Um deles é o tipo da serpente e sua pele eliminada, da Melanésia.

Esse mito fala que no começo os homens nunca morriam, entretanto ao atingir certa idade eliminavam a pele como as cobras e os caranguejos, e novamente ficavam jovens. Reza o mito que certa vez uma mulher que estava ficando velha foi a um regato para mudar de pele. Ao se desfazer da pele velha, lançando-a à água, notou que a pele foi levada pela corrente, mas que ficou presa em um galho seco. Depois voltou para casa onde tinha deixado o filho. Este, contudo, recusou-se a reconhecê-la, e disse chorando, que sua mãe era uma velha, diferente dessa jovem estranha; e assim, a fim de acalmar a criança, a mãe voltou ao regato em busca de seu tegumento eliminado e vestiu-o novamente. Desde então os seres humanos deixaram de eliminar a pele e começaram a morrer.


A explicação do nascimento da morte em todas as culturas é sempre seguida pelo inevitável encontro com ela e pela explicação da imortalidade da alma humana, alma que ela introduz aos desconhecidos mundos dos infernos e dos paraísos. Ela é a filha da noite e irmã do sono, por isso possui como a mãe e o irmão o poder regenerador. Se o ser que ela abate vive apenas no nível material ou bestial, ele fica na sombra dos infernos; se, ao contrário, ele vive no nível espiritual, ela lhe revela os campos de luz.
Desde que nascemos convivemos com a morte. Há uma permanente tensão por não sabermos nem como nem quando pereceremos. Enquanto isso vamos alimentado os mais diversos símbolos para espantá-la do dia-a-dia ou procurando formas de chegar ao paraíso, onde seremos recompensados pelo que fizemos de bom. Mas também cultuamos forças maléficas e procuramos incessantemente a imortalidade.


Os símbolos da morte estão presentes em todos os lugares e em todos os níveis de existência nessa tensão permanente entre as forças contrárias da vida e da morte. Desde crianças convivemos com ela, através de representações iconográficas de caveiras, túmulos, personagens vestidos com um manto negro e armados de foice, serpente, cavalo, cachorro ou outros animais psicopompos (condutores das almas dos mortos, na mitologia grega). Todos nós convivemos com riscos e contamos nossas histórias depois de passadas as tensões; tentamos evitar esse flagelo de muitas formas, principalmente com as novas descobertas da ciência, e pensamos em enganá-la sempre que sentimos sua presença, como nas histórias de cordel.


Entretanto conviver com ela significa conviver com a realidade; denota estar dentro de um mercado amplo e indiferente aos sentimentos, com todas as suas mazelas e artimanhas. Morremos um pouco quando os entes queridos partem e sofremos ao compartilharmos nossas dores com a perda de amigos, de ídolos e de nossas referências pessoais.


O sonho da morte e a realidade da vida - e vice-versa - trazem dentro de cada ato findo um pouco da poesia daquilo que parte, que renasce como um caminho para uma nova aventura da vida. Não a poesia funesta, a tristeza fúnebre, a fantasia gótica, mas o enleio, o espanto, a sombra perdida na floresta que volta para o corpo em forma de alma. Sim aos despojos da pele da serpente, renovada na jovem mulher que o filho não mais reconhece como sua mãe.


Ah, a imersão de Dante na Divina Comédia, a descida de Orfeu aos infernos para resgatar a alma de Eurídice, sua bela esposa; Gilgamesh em sua epopéia em busca da imortalidade e a descida de Ishtar, deusa da vida e da fertilidade, ao mundo inferior.
O mito, o sonho da imortalidade, a explicação na lógica de cada cultura fundem-se na abstração que ora faço enlevado pela imagem de um corpo sem sombra – a alma assombrada, que vi num tempo de espanto, de maravilha, e de afugentação. Então: "Vai-te daqui, ó Morte, segue teu caminho especial separado daquele que os deuses costumam trilhar./ A ti que tens olhos e ouves, digo: não toques em nossos descendentes, não magoes nossos heróis". ("Rig Veda", X, 18).


Publicado no jornal "A Gazeta", 19 e 20/7/2009

2 comentários:

  1. Esse texto me inspirou um conto:
    Antes de eu estar aqui eu esta num sonho. E nele uma mulher me dizia que eu deveria acordar e ir deixar à beira do rio, onde a areia é mais branca. havia chegado a minha hora - disse.
    E o sonho se foi, de repente como um chuva de temporal.
    e eu me vi aqui, deitado na areia e sendo absorvido por ela. sinto minha pela se diluindo em grãos, meu sangue se misturando a areia fina, refrescando o corpo que some.
    Eu era apenas um sonho há pouco. Agora sou eu em milhões de grãos de areia.

    Manoel do Vale

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  2. Prezado amigo Manoel do Vale. Vale lembrar que o importante é criar. Ainda não pude ver o teu filme , mas não passará de amanhã. Abraço.

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