Graças a Deus sempre tive muitos amigos: de infância, de escola, de bar, amigos que fiz no decorrer de uma vida cheia de altos e baixos e que sempre pude contar com eles nas horas que precisei. Até porque "amigo é pra se guardar no lado esquerdo do peito", como disseram o Fernando Brant e o Milton Nascimento. Não se têm amigos só para jogar conversa fora, brindar em uma comemoração ou para fazer (in)confidências, às vezes mentirosas e desnecessárias. Nesse caso sempre a amizade vai por água abaixo quando se vê um segredo traído e, pior, espalhado pelos sete cantos da cidade. Já tive "amigos" que supus serem Amigos, que ajudei pensando estar fazendo um bem, e que a ingratidão deles brotou como espinhosa árvore na lavoura que tentei cultivar.
Não falo de inimigos, pois como os ex-amigos, eles não merecem a minha ira. Apenas desprezo o que não quero prezar. Eles são meramente pontos obscuros de referência na encarnação de um maniqueísmo torpe, trivial e vulgar. Amigo mesmo é para contar com ele na hora da necessidade, para se divertir, criar junto e imaginar um mundo melhor para os que nascerão. È o protótipo de nossa própria utopia.
Talvez fosse desnecessário este preâmbulo para falar de gente que gostamos de graça e nem fosse conveniente registrar numa crônica o apreço que sentimos por certas pessoas que às vezes, por gestos naturais e descomprometidos, nem sabem a extensão do bem que fizeram a nós em determinados períodos de nossa história pessoal. É verdade que nesse caminhar encontramos amigos dos amigos que não são nossos amigos, mas que os toleramos por respeito à admiração pessoal ao amigo titular. Assim também é verdade que falseamos nossa conduta para não decepciona-lo, embora acreditando que de falso em falso se chega ao cadafalso.
Machado de Assis dizia em "Ressurreição" que o tempo não conta para a amizade: "Que importa o tempo? Há amigos de oito dias e indiferentes de oito anos". Talvez o tempo seja o que conta para quebrar os obstáculos, pois ele "é o único caminho que rompe o inacessível absoluto", no dizer da filósofa espanhola Maria Zambrano. E dizem que muitas amizades que se rompem, um dia voltando, passam a ser mais do que eram independentemente das diferenças do passado. Voltam mais sólidas e mais maduras. E passam a ver que sempre existiu alguém interessado nesse rompimento. Coisas de novela.
Pessoas que estimamos passam por provações e se tornam sábias sem saber se são, ou pelo menos não demonstram isso. Há as que têm as almas simples e vivem num mundo aparentemente sofisticado. Mas as almas dos amigos muito se assemelham a casas: algumas delas são cheias de janelas abertas, onde corre ar puro e luz, outras são como prisões, fechadas e escuras, mas que merecem nossa consideração e respeito, porque a alma entende-se a si mesma e o amigo vale a afeição que fazemos valer por ele. E Uma alma, mesmo fechada, sempre traz uma luz que pode nos iluminar e banhar-se a si própria.
Amigos têm defeitos e mazelas. Por essa imperfeição mútua é que normalmente amizades se atraem, bem como pela admiração recíproca de cada desempenho social. Uns moldam outros, outros se espelham em alguém. Mas na amizade só não pode existir a incorporação da personalidade do amigo. Deve haver o respeito à solidão e ao silêncio do outro. Espíritos amigos voam na mesma direção da fonte original e bebem da mesma água fresca. Devem saciar sua sede bem antes que ela seja poluída pelos interesses pessoais de qualquer conspirador. A amizade só é possível pela oportunidade.
Imagem extraída do livro "Sobre o Tempo e a Eternidade" de Rubem Alves. Ed. Papirus. São Paulo, 1996
Nooosssa!!!! lindo demais... amei.
ResponderExcluirÉ, anônimo, toda amizade tem que ter essência. Valeu.
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