MANUSCRITOS PARA LAURA
No sonho, eu beijava a boca carnuda de Laura. Beijava-a depois de conferir, pelos olhos escuros sob as sobrancelhas bastas, que era mesmo ela. Meus dedos se entranhavam em seus cabelos, percorrendo a circunferência de sua cabeça, e ao mesmo tempo em que a beijava, sentia-lhe o perfume natural do corpo, mesclado a outro cheiro que poucas vezes senti durante toda a vida, e ainda assim, apenas em sonho. Era um cheiro de amor. Ao acordar, o cheiro havia se exaurido, mas a sensação dos lábios de Laura ainda ficou nos meus.
São cinco horas da tarde e recordo o sonho, olhos fechados, recostado na cadeira do escritório, quando Laura entra, sem bater na porta, a mão espalmada impondo os cinco dedos em riste: D. Pedro I teve cinco amantes! Cinco amantes de uma vez só! Peço-lhe que se sente, confuso com a informação repentina. Ela procura obsessiva o isqueiro dentro da bolsa, rosnando um palavrão com o cigarro preso entre os lábios. Anda até a janela, descerra abruptamente as cortinas e encontra finalmente o isqueiro na bolsa iluminada pela luz da tarde. Também da bolsa arranca uma folha de papel amarrotada. Acende o cigarro, me olhando com firmeza, dá uma profunda tragada e depois liberta a fumaça devagar, enquanto se senta na cadeira em frente a minha. Eu sei quando você está mentindo. Eu sempre sei, diz, e embola na mão nervosa a folha de papel, antes de arremessá-la ao cesto de lixo. A bolinha de papel bate na borda do cesto e rola pelo chão, indo encostar-se ao rodapé, abaixo da janela. Laura... balbucio, e ela não permite que eu continue. Levanta-se com violência e sai, batendo a porta, deixando na sala a fragrância que sinto em sonho, misturada ao cheiro de cigarro.
Nos últimos meses, adquiri o hábito de não voltar para casa ao final do expediente, embora na maioria das vezes, ao voltar, precise enfrentar os acessos de fúria de Laura. Às vezes permaneço além do horário rabiscando versos nos papéis destinados a rascunho. Na gaveta amontoam-se folhas com dois ou três parágrafos de contos que provavelmente nunca chegarei a terminar.
Vou até a janela, olho para baixo pela vidraça maculada de impressões digitais, e vejo Laura do outro lado da rua, fumando, recostada sob uma marquise para proteger-se da chuva fiel ao entardecer desta cidade. Assim distante, ela já não me parece tão abalada. O vento lhe agita os cabelos e a chuva lhe respinga a blusa de seda, e imagino que a seda azul e translúcida se cole aos seus seios.
Laura continua bela, a despeito do tempo que lhe conferiu uma austeridade de mulher madura. Dois sulcos indeléveis entre as sobrancelhas hoje definem seu imprevisível humor, mas as formas do corpo são as mesmas de quando a conheci. Com a blusa azul e diáfana, veste um jeans que lhe define a forma harmoniosa das nádegas e coxas...
Atira numa poça d´água o resto do cigarro e ajeita ligeiramente os cabelos. Observa os transeuntes com guarda-chuvas que trafegam diante do prédio. Um homem passa, lhe oferecendo um folheto, e ela lhe dirige um olhar de recusa. Se ele insistir, ela provavelmente lhe fará um gesto obsceno. Ele vai embora, e ela abre a bolsa para apanhar outro cigarro.
Conheci Laura num dia como este, sob um dos aguaceiros de abril. Ela saía com duas amigas de uma loja de discos e segurava nas mãos, entre gestos agitados, risos efêmeros e frases desencontradas, um disco de Bob Dylan. Eu, que saía de uma livraria ao lado, trazia com única companhia um livro de Graciliano Ramos, e lhes ofereci carona para onde quer que fossem. Somente Laura aceitou, despedindo-se das amigas com uma irônica bolinha de chiclete. Chovia ruidosamente sobre o carro e Laura ria sem compostura dos pedestres que se encharcavam na enxurrada. Desde então, sua personalidade caprichosa me impuseram regras que não serviram para mais do que me estorvar a liberdade, tornar-me solitário e sem sonhos aquém do sono, envelhecido antes da hora. Tenho hoje como companhia, meu amor por Laura e meus manuscritos engavetados sobre o tema obsessivo da solidão.
Por muitas vezes, seus ciúmes destruíram os objetos mais caros da casa, rasgaram lençóis e quebraram louças, enquanto eu me refugiava nas madrugadas na rua, para retornar na manhã seguinte, rogando-lhe perdão pelas infidelidades que nunca havia cometido.
Ainda amo Laura, a despeito da intranquilidade que me causam os seus acessos de fúria, sua insegurança, seus caprichos, o modo amargo de me tratar, a despeito do fardo da solidão.
Aos meus pés, sob a janela, a folha de papel embolada. Abaixo-me para apanhá-la, curioso com o conteúdo. É um dos meus contos. Uma história de amor inacabada.
Laura ainda está sob a marquise e a chuva abrandou-se. Aproxima-se um homem de certa elegância, para diante dela e com um galanteio lhe aponta o carro. Ela hesita um instante, olha para cima e me surpreende na janela, a observá-la. Então joga fora o cigarro, e com a mesma ironia da bolinha de chiclete de tantos anos atrás, enlaça o braço que o sujeito lhe oferece, acena-me agitando infantilmente os dedos e entra no carro.
Conto escrito em 1997 e publicado no mesmo ano no jornal “Amapá Literário”
(*) LULIH ROJANSKI nasceu no Paraná, mas mora no Amapá há 25 anos. (“Portanto, já sou daqui”, diz ela.). É escritora, com publicações como “Lugar da Chuva” e “Abilash”, além da participação em oito coletâneas de contos e mais dois livros em parceria com outro autor: “Banco dos Sonhos” e “Castanheiros do Amapá”. É formada em Letras – professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira.
Foto capturada do facebook de Lulih.
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