quarta-feira, 4 de novembro de 2009

tsUNAmi amaZÔNicA

260720081101

Três dias após a morte de F.C. eu soube da notícia alvissareira: o rio voltava a encher. Devagar, mas voltava. Os habitantes que restavam na cidade já sorriam com grandes esperanças.

Até então ninguém sabia as causas que fizeram o maior rio do mundo em volume d’água se afastar tanto do seu leito natural. Os cientistas se contradiziam, ecologistas acusavam os governos dos países ricos e o povo alimentava superstições e castigos misteriosos de diversas deidades. Mas o certo é que as marés que por aqui chegavam ficavam muito além do trapiche. Tudo acontecera tão rapidamente que os ariscos mergulhões tiveram que virar comida e as andorinhas, tão sinceramente nossas, desapareceram. Quem diria! A praia de mangue da antiga beira-rio parecia um cemitério de pequenas embarcações. Houve emigração em massa e a economia da região despencou. Sobrevivíamos com doações.

A cidade evaporava. Era um deserto em consumição. Suava com o calor assassino. Só melhorou quando F.C. convocou extraordinariamente a Assembléia Legislativa e apresentou Projeto de Lei que invertia o horário de funcionamento de trabalho e de todas as atividades oficiais: todos trabalhariam à noite e descansariam de dia. Naturalmente que tudo fora regulado, inclusive os plantões. Apesar de polêmica, fora a decisão mais sensata, principalmente no que se referia à energia, visto que as cabeceiras dos rios das hidrelétricas estavam secando.

As mudanças climáticas eram rápidas. Ninguém nos explicava nada, as notícias sobre o assunto eram desconexas, fugazes.

Foi no domingo que eu senti o nó no peito e o pressentimento de algo terrível: liguei o rádio e ouvi que um tsunami, onda gigante, aproximava-se do litoral a uma velocidade crescente; que se separara em duas ao bater na costa oriental da ilha de Bailique. Uma seguia, destruindo as pequenas ilhas do arquipélago e outra deslizava rumo a Caviana. A primeira ganharia mais força e se somaria à pororoca, correndo mais rápida ainda em nossa direção. Já tinha uns cem quilômetros de extensão e vinte metros de altura. Em poucas horas chegaria em nossa vulnerável cidade.

Fomos alertados e preparados pela Defesa Civil e pelos Bombeiros. Quando ela se anunciou, barulhenta e avassaladora, ainda deu para vê-la alta, acima das ilhas do outro lado do rio. Segundo o rádio ela media em torno de sessenta metros de altura. Era um ser estranho vindo guerrear e destruir. Chegou veloz e mortal com seu companheiro vento, rebentando o que era fraco e lavando praças e edifícios.

Até que as mortes não foram muitas. A maioria acreditou na ciência e nas informações maciçamente veiculadas.

Mas a cidade ficou suja e caótica. Só alguns grupos de estudantes se divertiam colhendo os peixes oceânicos que se debatiam nos lagos formados com a intempérie. Tudo era novidade. Mas já se falava em reconstrução.

O fluxo-refluxo do tsunami fez o rio encher e ficar agitado, cheio de ondas, cheio de vida. Sua água agora é salobra e de tonalidade esverdeada. Disseram-me que só daqui a dez ou vinte anos ele voltará ao que era.

Já dá para ouvir o grito das gaivotas, a silhueta dos mergulhões em formação de flecha e uma nuvem de andorinhas bailando ao pôr-do-sol do equador. Parecem cavalos alados à procura do Olimpo.

Do livro equinoCIO – Textuário do Meio do Mundo. Paka-Tatu, 2004.

Um comentário:

  1. Alô, Fernando Canto. Já havia lido esse conto no teu livro EquinoCio. Fui ao lançamento dele na livraria Nobel em julho de 2004. Só me ligfuei nele quando no mesmo ano aconteceu aquele tsunami na Indonésia, acho que no fim ddesse ano. Ainda bem que não foi aqui em Macapá.Fiquei impressionado.

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