Texto publicado em 1998, 99 ou 2000 no "Liberal Amapá". Depois de todo esse tempo espero mais uns poemas da Alcinéa Cavalcante, que tem hoje mais brilho na sua "Estrela Azul"
Tive duas agradáveis surpresas literárias na semana que passou. As duas proporcionadas pelo pessoal do SESC – Araxá, que vem continuadamente avançando nos seus projetos culturais, fazendo e promovendo as nossas coisas e dando a elas o valor que merecem.
Ao dar o nome de Hélio Pennafort a sua biblioteca a instituição realizou um ato de carinho às nossas letras e uma justa homenagem ao escritor e jornalista que muito contribuiu para que o Amapá tivesse as suas mais legítimas manifestações culturais conhecidas. Foi através do Hélio que a maioria dos que fazem a formação da opinião local hoje, se baseou para sistematizar a questão da identidade do homem amapaense.
Fora ou dentro das academias seu trabalho ganhou a dimensão esperada e a valorização merecida, posto que só ele conseguia expressar com elegância nos seus textos as formas rudes (para nós) do falar cotidiano da vida do interior.
Muitas vezes publiquei sobre a obra do Hélio por considerá-lo um narrador excepcional das coisas da nossa gente. "Triste como um tamaquaré no choco", "foi cocô de visagem" eram expressões do homem interiorano que ele usava no dia-a-dia. Para qualquer objeto ou situação complicada chamava "catrapiçal". Vivia contando anedotas de caboclo se divertindo a valer com elas. Era extremamente sincero com seus amigos e não guardava o que tinha de dizer. Apesar de ter exercido inúmeros cargos importantes no Governo, tinha lá suas fraquezas e de vez em quando fugia do expediente para ir ao Abreu ingerir uma gelada, mas era também grave e sério nas suas responsabilidades.
Ainda adolescente andei em sua companhia, juntamente com o Odilardo Lima, repórter e poeta que virou delegado de polícia, e o Manoel João, um telegrafista e caçador de primeira linha, bom contador de histórias. Minha função no grupo era tocador de violão e guardião da memória deles, afinal iriam precisar de detalhes que fatalmente esqueceriam, quando da redação das reportagens que faziam para a rádio Educadora e o jornal A Voz Católica.
Hélio proporcionava muitas histórias engraçadas, como certa vez em Mazagão, no início dos anos 70. Fomos de barco até a sede do município, e de carro até Mazagão Velho registrar a festa da Piedade. Ele ia dirigindo (Pasmem!) um jipe, e nós vínhamos tensos, no maior medo, porque até então ninguém jamais o vira dirigir, a não ser uma bicicleta. Com alguns atropelos e barbeiragens chegamos ao destino. Anoitecia e ele foi à casa do seu Osmundo, que liderava o conjunto "Mucajá". Era um grupo rústico, de pau e corda e clarinete que tocava samba, baião, polca e outros ritmos, E que em seguida começou a tocar para nós. Lá pelas tantas, devido sua generosidade etílica, acabou o suprimento de uísque e cachaça. Em toda a vila também não tinha nada de álcool. Ele chamou uma rapaziada e disse: - Vão ver se encontram cachaça que eu dou uma grana pra vocês. Eles voltaram com uma "meiota" de "canta-galo". O Hélio deu uma golada e cuspiu: - Querendo me enganar, é seus porras? Cachaça com água eu não bebo, inda mais se é de mulher que acabou de parir. Fiquei sabendo depois que as mulheres do lugar usavam aguardente na assepsia do pós-parto e que os moleques haviam roubado a garrafa de uma senhora que parira uns dias antes. Esse episódio só fez solidificar a minha admiração pela figura simples e humana do jornalista.
Fecundo no seu trabalho, Hélio sempre procurou dar a ele novas formas em linguagens diferentes. Em 1984/85 associou-se ao talento do piloto e vídeo-maker Roberval Lavor e produziu inúmeros vídeos sobre aspectos turísticos do então Território do Amapá. Embora não se adaptasse ao computador, o apregoava como instrumento do futuro, pois era atualizado nas informações tecnológicas.
A segunda surpresa foi o relançamento do livro "Lamento Ximango em forma de cantiga" de Osvaldo Simões Filho, do qual fui prefaciador, e o lançamento de "Estrela Azul" de Alcinéa Cavalcante, muito aguardado e cobrado por todos aqueles que com ela labutam na arte de escrever poesia.
Neste seu novo trabalho Alcinéa expressa a sua maioridade indisfarçada, porém demonstrado uma espécie de descrença em tudo, amarga e niilista. Seus poemas, a maioria feitos em versos curtos, querem talvez denotar o resultado de uma experiência pessoal frustrante. Como o fez Rimbaud, a poeta escolheu temas malditos, amargos, destilados com imensa autocomiseração que é própria dos mais sensíveis artistas, mas que não se adaptaram a este mundo avassalador e cruel. "Solidão", "Desamor", "Faxina", "Mágoa", "Tédio", "Entardecer", "Ausência", "Saudade", "Cansaço" expressam pelos títulos uma condição de quase desespero, de necessidade de ter a dor como a fonte desse rio de mágoa.
Longe de querer o ideal poético, considero o livro de Alcinéa um exemplo de maturidade. O gérmen de ontem que frutificará amanhã, mesmo que o encanto seja a condição da felicidade – ou da tolerância - ("Recompensa", página 35). Sua sensibilidade dá ao leitor a possibilidade de refletir sobre as dores do mundo e as frustrações pessoais, porque as palavras-chaves de sua poesia são muito recorrentes, como anjo/ ternura/ inauguração, e por serem assim, cada início e o meio traduzem o inopinado golpe do "Fim", quando "A estrela Azul, Anjo/ se apagou."
Seria a estrela azul um símbolo de desesperança? Provavelmente não, porque a poesia de Alcinéa Cavalcante traz um conjunto de emoções e uma doce promessa "que no próximo entardecer/ vou pintar um arco-íris/ para deixar tua tardezinha/ menos triste" ("Entardecer", página 29).
Quem teve o prazer de conhecer o Hélio Penafort sabe a falta que ele faz. Esse livro vai matar um pouco a saudade.
ResponderExcluirJoão Lamarão
João, o Hélio faz mesmo falta. "Paresque" que vão dar o nome dele para a Rodoviária.
ResponderExcluirEle era um pouco avesso a esse tipo de homenagem. Mas é um "catrapiçal" (nome que o HP dava a qualquer coisa) a ser considerado pela falta que faz e pela lembrança do seu nome para cultura do Amapá.
É muito bom lembrar do Helio Penafort, lembro dele com sua bicicleta rodando por toda Macapá. Figuara querida de alto astral e jornalista amigo e solidário.
ResponderExcluirdaniel de andrade
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