segunda-feira, 17 de agosto de 2009

O LADRÃO DO PRIMEIRO AVIÃO


Não tenho dúvida que a criação popular, expressada pela música é tão representativa para a literatura como o são os mitos. O folclore pode muito bem historiar fatos onde nunca houve documento histórico que sirva de prova para a escritura da História pelo pesquisador.

Na cultura popular a música pode muito bem narrar a vida de uma comunidade e colaborar para o esclarecimento de fatos pela poesia (e pela descrição do fato) nela contida.
Os "ladrões", músicas de marabaixo, são assim chamados porque trazem a público a história individual de pessoas ou grupos. Os versos roubam a individualidade de membro ou membros da comunidade que realizou ou realizaram alguma proeza boa ou má. Trazem principalmente testemunhos, histórias não necessariamente verdadeiras, mas que divertem os participantes e que de alguma forma são elementos de função social, reguladores e regradores da sociedade.
Eles contam, através do olho arguto do poeta-cantador, uma história, um fato, como por exemplo, este abaixo, que mais parece um depoimento lítero-musical sobre a chegada do primeiro avião em Macapá. A narração é do saudoso Martinho Ramos, filho de Julião Ramos:


"Quando passou por aqui o primeiro avião, eu estava com dois anos de idade, mas pelos meus antepassados eu soube de muitas coisas que se passaram na época (1923), inclusive o Sr. Eufrásio foi quem conseguiu nos dar uma grande música do Marabaixo, que tem o título de 'A irmã Catita viu o salão / Assim, atracada assim eu não subo não".


"O avião era uma Catalina, anfíbio, descia n'água e em terra. Mas como nós não tínhamos pista de pouso, eles resolveram descer na água. Então, o povo todo correu; aí o Sr. Eufrásio começou a enversar toda a história do avião:

Corram, corram minha gente
Vamos na praça espiar
O barulho vem de cima
E é n'água que vai
pousar.

Em seguida, todo mundo correu lá pro "Torrão", que era o nome de onde está localizado hoje o Macapá Hotel. Na ocasião, o velho Eufrásio, observando que os ocupantes do aparelho eram todos alemães, fez:
A cabeça do alemão
Muito sol ele apanhou
Na taberna do Ventura
Um guarda-chuva ele encontrou.

Seguindo, vieram à cidade onde nós tínhamos um padre alemão; o padre Júlio (Maria Lombaerd), que, ao conversar com um dos tripulantes, soube que a gasolina deles havia acabado.

"Eles estavam perdidos e sem gasolina. Foram recolhidos pelo padre Júlio e aqui ficaram. Logo depois que a maré encheu, eles abriram o avião para visitação pública. As pessoas foram até ao avião, mas não sabiam como entrar. Então um cidadão prontificou-se em auxiliá-las. Quando o cidadão quis atracar na cintura de uma freira (a quem chamavam de Catita, por ser pequena) para pô-la no avião, ela disse: "Atracada assim eu não subo não ". O velho Eufrásio viu aquela situação e tirou o verso que é o estribilho da música:

"Viu a irmã Catita pelo salão / Assim, atracada assim eu não subo não".
"A irmã Catita não ficou aborrecida porque felizmente ela disse aquela expressão
sem saber e sem se preocupar se havia um poeta observando tudo para dar a música
do marabaixo que deu".

O interessante é que o avião pousara no dia 18 de março, véspera da festa de São José, padroeiro de Macapá. O velho Eufrásio fez mais uma estrofe:

No dia 18 de março

Quando o avião chegou

Na terra de Macapá

Todo mundo se alegrou"

Segundo o seu Martinho nessa data a cidade estava repleta de gente da redondeza que veio passar a festa. "Nesse dia foi um deus-nos-acuda. Também pudera, pois ninguém tinha nem ouvido falar em semelhante coisa. Só podia assustar". (Ver Canto, Fernando, in Telas & Quintais, CTC, Macapá, 1987).

Publicado no Jornal "A Gazeta" de 16/08/2009

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