sexta-feira, 19 de abril de 2013

O ÍNDIO: PREGUIÇA E DOMINAÇÃO

Texto de Fernando Canto
Imaginemos a surpresa dos portugueses ao chegarem às praias brasileiras em 1500. Os índios ali, saudáveis, ao ponto de serem elogiados por Caminha, o escrivão da frota de Cabral: “andam muito bem curados e muito limpos; os corpos seus são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não podem ser mais...” E adiante a conclusão de Caminha : “eram gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva”, (CAVALCANTI, Clóvis. Sustentabilidade e Economia e Paradigmas Alternativos de Realização Econômica, in Desenvolvimento e Natureza: Estudos para uma Sociedade Sustentável – C. Cavalcanti (org.) Ed. Cortez, Recife, 1995).
Não muito distante José Bonifácio de Andrade e Silva “advogava que se aumentasse a riqueza nacional através do uso do conhecimento científico e defendia a necessidade de se removerem os índios de sua preguiça e sua ignorância, a fim de levá-los ao progresso.” (Idem,1995).
Todos esses relatos são importantes para enfatizar a visão do dominador sobre a atitude indígena perante a natureza, haja vista, por serem considerados primitivos, não conheciam a roda e nem a propriedade privada.
Por outro lado conheciam sabiamente a natureza e respeitavam as normas desenvolvidas por eles mesmos a respeito do manejo ambiental, anticoncepção, silvicultura, caça, pesca e cura de doenças.
Por isto, o objetivo deste texto é apenas buscar a compreensão do substantivo preguiça relacionando ao indígena, algo que de tão citado pelos viajantes e cientistas, desde o Descobrimento, hoje foi transferido para outras categorias de pessoas como os caboclos, caiçaras e caipiras, mas sempre com a mesma conotação irônica, pejorativa, às vezes autoritária pelos que veem de fora para dentro.
Para ilustrar o texto apresentamos inicialmente a breve “Estórias do Preguiçoso”1que servirá de base para análise em epígrafe.
 ESTÓRIAS DO PREGUIÇOSO
 
Um homem morava num lugar muito bonito e farto, tendo ali, além de sua casa, uma grande roça.
Sua casa ficava perto de um lago, de águas amarelas, onde viviam peixes de todas as espécies.
Mas, de vez em quando, saia para pescar e caçar, mais abaixo de seu lugar, num sítio que tinha um igarapé e uma vazante. Boa de plantar, e terras pretas muito boas para roça.
Naquele igarapé apareciam muitos peixes e bichos de casco. E nas suas matas viviam antas, veados, cutias, pacas, macacos, mutuns, inhambus, macucauas. Os patos e marcas mais gordos eram das cabeceiras desse igarapé.
Um dia esse homem disse a sua gente:
- Vamos passar alguns dias na nossa barraca do igarapé, fazer uma farinhada e beber caxiri à vontade. Aqui temos. E ali não nos falta nada.
Arrumaram todas as suas coisas e foram.
Mas esqueceram de levar um tipiti.
Lá o homem convidou os irmãos os cunhados para pescarem e desmancharem parte da roça.
E perguntou ao cunhado mais moço:
- Queres ir conosco ou queres ficar? Um de nós tem que ficar para fazer um tipiti.
Esse cunhado, que era muito preguiço preferiu ficar, dizendo:
- Eu quero.
- Sabes fazer tipiti?
- Sei...
- Então, fica.
Mal o seu cunhado virou as costas, acompanhado de sua gente, o preguiçoso se meteu na rede. Passou ali algumas horas sem fazer nada. E, já ao meio dia, pulou da rede e foi apanhar arumã, para preparar as telas e fazer um tipiti.
De volta, sentou-se numa esteira, diante de um monte de folhas de arumã.
Mas não conseguia trançar as talas e fazer o tipiti.
Depois de muito pelejar, o preguiçoso foi à beira o igarapé, levando uma cuia de caldo de tucupi, para tinguijar tamuatás.
Conseguiu pegar um tamuatá e o levou para a barraca do cunhado. Ele queria ver se, olhando as placas do peixe, aprendia a fazer o trançado de tipiti. Mas nada conseguiu.
Nisso chegou o homem com a sua mulher, filhos e cunhados, carregando daruanas de peixes e aturás e jamaxis pesados de frutos e de raízes de mandioca.
Vinham todos com muita fome e muita sede. E as mulheres trataram logo de moquear o peixe e de fazer tamorida.
O homem, então, perguntou ao preguiçoso:
- Já fizeste o tipiti?
- Não, não acertei fazer.
E contou que tinha apanhado um tamuatá para, olhando-lhe as placas do corpo, aprender a fazer o trançado do tipiti.
O homem falou zangado com o preguiçoso, falou, falou, e apanhou as telas de arumã e foi fazendo o tipiti.
E todo o tempo esteve resmungando.
- Se não sabias tecer o tipiti, por que mentiste? Agora todo mundo sabe eu és um preguiçoso e um mentiroso.
Como o homem trabalhava depressa, logo aprontou o tipiti.
- E chamou seus irmãos e cunhados:
- Segurem esse meu cunhado. Para castigar bem, vamos metê-lo no tipiti.
Assim fizeram. O cunhado gritava e eles riam, riam.
- Esticaram, esticaram o tipiti. E o preguiçoso dentro daquele trançado, nem podia respirar e do corpo dele começou a pingar sangue grosso, parecido com o caldo de tucupi pixuna.
- Depois retiraram e o deixaram no chão mole, mole.
- E foram comer peixe moqueado e beber caxiri.
Depois da farinhada o homem disse à sua gente:
- Preparem tudo para sairmos amanhã cedo. Vamos voltar para nossa casa.
- O preguiçoso disse à mulher que não iria com os cunhados, que ainda ia pescar.
No dia seguinte, o homem foi embora com a sua gente, deixando o preguiçoso e a mulher na barraca do sítio.
Assim que pareceu ao preguiçoso já irem muito distante, o seu cunhado e sua gente, saltou sobre a mulher e a matou a pau.
Depois foi jogar, do lado de lá do igarapé, o cadáver da mulher.
O fígado da mulher, porém, virou cancan e pulou para o galho de uma árvore da beira do igarapé.
E o cancan se pôs a cantar:
Cá, cá, cá, cá/ Cariméncariméncariméncarimén/uatánuauatánuauatánuauatánua/ Cá, cá, cá, cá (Anda depressa. Foge, foge. Meus irmãos já vêm aí.)
O preguiçoso, ouvindo o cancan cantar, tirou casca de pau, fez uma canoa grande e remos. E fugiu, rio abaixo, assim que saiu do igarapé.
Os irmãos da mulher do mentiroso ouviram o cancan cantar, no alto de pau: Pinduanaruianepaidéidearo (O mentiroso matou a mulher)/ Itiuanêhe (cortou-a)/ Içu tane iquibá (tirou-lhe o fígado)/ Içu tane quibá/IniputeNenequiáini
Os irmãos da mulher saíram, pelo rio abaixo, à procura do preguiçoso.
E só encontraram bolhas de espumas, mostrando que a canoa dele havia passado por ali.
Remaram, remaram, remaram. E só encontraram bolhas de espumas.
Nunca ninguém encontrou o preguiçoso.
A nosso ver a história acima serve para ilustrar, de um lado, um aspecto com o qual convivemos quase que diariamente nas chamadas sociedades urbanas brasileiras: o etnocentrismo. De outro, o convívio dos indígenas com a preguiça, considerado como um estado semiletárgico, mais propriamente aversão ao trabalho, indolência, negligência.
A princípio, tanto para os habitantes das cidades como para os indígenas a preguiça parece ter o mesmo significado e o mesmo valor. Valor que se torna negativo à medida que ela, a preguiça, se estabelece de forma perniciosa e prejudicial para as relações sociais dos grupos. A diferença do conceito de cada lado parece estar na pena aplicada: é comum em nossa sociedade desdenharmos do preguiçoso e do mentiroso. Nosso repertório anedótico está eivado de fatos aumentados, extraídos da realidade. Mas convivemos com a preguiça e com a mentira de modo quase pacífico.
Naturalmente que em qualquer sociedade “civilizada” existem leis que regem o comportamento do individuo, leis que controlam a reação do homem e seu trabalho para que este seja o “instrumento de progresso e do desenvolvimento”.
Grosso modo não há lugar para o preguiçoso na sociedade capitalista urbana. Ou ele trabalha ou nada ganhará para se manter. Entretanto, essa afirmação não se entende ao que poderíamos chamar de classes marginalizadas, que em função das contingências econômicas, políticas e sociais, dedicam-se ao ganho fácil e à exploração, através do medo e da violência, sujeitando-se, portanto às penalidades da lei.
A preguiça é fato universal. Ora, tantas vezes ela não foi vista como antagônica à riqueza, como sinônimo de pobreza? Aliás a sesta é um desses estigmas que permanecem na vida cultural dos países latino-americanos.
Por outro lado não foi à toa que o mundo capitalista ilustrou e reproduziu a fábula de La Frontaine “A Cigarra e a Formiga” como protótipo do valor do trabalho, ainda que de forma cruel, pois até certo tempo ninguém considerava o trabalho de cantar (da cigarra “preguiçosa” que nada queria com o trabalho, no conceito das formigas) como elemento de redução do estresse, ou algo romântico, ao contrário das formigas que trabalhavam duramente, acumulando alimentos para comerem no inverno.
Tal fábula demonstra a ideia de acumulação de capital e de prevenção contra os tempos ruins que por ventura podem surgir, como as catástrofes, a inflação, doenças, crises e a penúria. E tal ideologia incutida na educação infantil reproduz-se e promove o etnocentrismo.
É indiscutível, portanto a mentalidade capitalista sobre o modus vivendi indígena. Para o capitalismo que assola nossas fronteiras, explorando florestas, espoliando o homem ribeirinho, o pescador, o coletor e sobretudo o elemento índio, o que não se fizer para se explorar ao máximo os recursos naturais é considerado assaz um gesto de traição cívica, pois os dirigentes dizem que a pátria precisa se desenvolver. O índio e o caboclo trazem em seu mundo um rio de peixes, uma floresta de caças e frutos abundantes. Para eles a paz da natureza, a proteção a ela são valores reais e indissolúveis de sua vida, daí que o trabalho duro, do modo capitalista de pensar não justificaria uma mudança radical no seu modo de vida.
Essa é uma visão um tanto ingênua, mas que é justificada pela penetração de conceitos capitalistas no seio de uma comunidade de símbolos e valores diferentes dos do homem branco, o qual por sua vez justifica seus atos avassaladores através da força e da violência como meios para estabelecer sua ideologia de progresso em regiões que possuem potenciais a serem explorados, sendo eles objetos de ganância e nem sempre amparados por lei.
Ao índio preguiçoso da estória acima a punição foi metê-lo dentro de um tipiti até sangrar. Foi o castigo para os que não aprendem a reproduzir sua própria tecnologia. Para o homem da cidade a pena é o desdém, o deboche, a ausência de credibilidade e obstáculo a um prestígio maior. Nessas condições (viciosas) o homem da cidade anda em círculo: da indisposição à doença, da falta de trabalho à ausência de dinheiro, da fome à indisposição para o trabalho e assim por diante.
No aspecto religioso, cristão, os ocidentais olham a preguiça como um dos sete pecados capitais, cuja pena ao preguiçoso é uma nova vida miserável a arder no fogo do inferno, após a morte.
Compreende-se que enquanto mito, a estória do preguiçoso traz em seu bojo inúmeras possibilidades de análise. A preguiça não se estabelece como um defeito que se opõe ao valor do trabalho pois no grupo tribal ele existe para garantir a sobrevivência dos indivíduos. Cada ato de preguiça intervém no relacionamento tribal, com ela deixa de existir a confiança e o parentesco anula-se com o castigo imposto, ainda que ao índio preguiçoso fosse dada uma tarefa para ajudar na festa (“E foram comer peixe moqueado e beber caxiri”). Em seguida, após a humilhação sofrida, o preguiçoso se vinga dos parentes matando a mulher. Mesmo procurando por eles após o aviso do “fígado da mulher” (que virou cancan) ele não é mais encontrado.
O final da estória não só ilustra a ideologia do poder (força, respeito) daquele chefe indígena, como também mostra o desejo de extinguir o defeito (aplicando um castigo cruel) que é considerado um obstáculo nas relações sociais. Parece ser contrário ao conceito “normal” das sociedades urbanas, onde a preguiça, mesmo sendo considerada um entrave ao desenvolvimento econômico, paradoxalmente não chega a prejudicar tanto as relações sociais. Daí a visão etnocentrista das sociedades urbanas. Há conceitos sobre conceito e muitas visões de mundo sobre a preguiça, pois ela se torna um estereótipo difícil de ser extinto. A preguiça, na realidade, representa uma das inúmeras justificativas para a dominação e extinção do índio e a consequente exploração de suas riquezas.
 
 

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