Crônica de Fernando Canto, publicada no jornal “A Gazeta” de domingo, 09/05/2010
O sol se punha certo dia na frente de uma cidadezinha das margens do Rio Amazonas quando deparei com uma cena que não via há tempos: um papagaio rodopiava preso pelo rabo na linha de outro que lhe cortara. Um quadro dramático, pois o objet o parecia lutar desesperadamente contra o seu algoz, o vencedor desse duelo. O vento colaborava para que ele se enrolasse cada vez mais, enquanto ambos eram puxados para baixo, lentamente, sob a gritaria dos meninos ribeirinhos em diversão com aquela brincadeira. No terceiro convés do navio eu apreciava aquilo como um lamento e cheguei a sentir a dor do objeto de papel e tala, de linha e cola, matérias-prima imprescindíveis para a sua existência artesanal no meio dos homens.
E eu me perguntava como é que um objeto desses, um brinquedo tão perecível como comida, no meio de um bando de crianças, pode despertar esse sentimento tão estranho. Parecia sim, uma cena de cinema mostrando uma titânica luta entre animais ou um embate mortal entre o herói e o bandido. Eu me perguntava até mesmo o que eu estava fazendo ali, quase sem destino em busca de algo que nem mesmo eu sabia o que era.
O papagaio rodopiante fora interceptado em sua aventura de subir ao céu e brindar seu empinador com o brilho do poente. Uma aventura efêmera, diga-se, pois certamente espera-se de um empinador de papagaio a habilidade de movimentá-lo como um acrobata chinês. Entretanto, uns são mais hábeis que outros nesse embate entre êmulos casuais. O “ser” geométrico em movimento circular e decadente era o meu oposto naquela viagem súbita, porém certíssima de um encontro, pensei num primeiro momento. Uma viagem justificada pela incerteza de viajar sem planejar em uma hora desnorteante, confusa, ação corroborada pela angústia que a rotina causa, pela necessidade de partir sem ter que chegar. Assim como poderia ser um encontro com alguma coisa também teria um significado especial, que eu só poderia saber depois.
Então o navio seguiu sua rota sob a noite estrelada. Milhares de quilômetros, dezenas de trapiches e mãos abanando suplicavam para que eu aportasse. Contudo eu sempre preferia o próximo porto.
Eu me sentia um planeta cuspido pelo furor da via láctea, latejando no quase imperceptível movimento das ondas, naquelas paragens vistas há séculos pelos navegadores espanhóis. Até sonhei que o corpo de Orellana estava sendo devorado por cardumes de piranhas negras; que Pinzon e sua tripulação enxergaram as lendárias Amazonas curtindo o rum que lhes restava, embotados no inebriante líquido. Senti o coração transpassado por uma flecha mura e percebi olhos brancos na floresta à margem do Mar Dulce, que mais tarde se tornaria o célebre rio das Amazonas. O ouro reluzente de El Dorado refletia a paixão dos homens cobiçosos, ávidos por riquezas, vociferando dentes e arroubos de ódio incontido pelos índios. Vi um litoral de ondas grandes e arrebatadoras: uma espécie de vingança da terra e da água contra os homens que ousavam penetrar-lhe a pele. Ouvi um som pulsante, vibrando embaixo do sol, ofertando aos habitantes do lugar o arrepio, o medo, a espuma capilar das ondas que viajam por extensões desmedidas. Vislumbrei o nascer de fortalezas feitas de pedras e os olhares de seres calcinados em seus degredos. Ali nas construções militares mais do que forçadas erguiam-se muralhas feitas de impropérios e piche, de farinha d’água e sangue, de sonho, embrutecimento e chibata. Gritos, gritos dos negros encalcetados se diluíam no ar junto ao barulho das ondas. Adiante, grandes pássaros atravessavam as ilhas na companhia de milhões de borboletas amarelas enquanto soldados disparavam canhões que varavam a História, até o meu despertar na rede balançante.
Eu havia sonhado em espiral, rodando como um papagaio que vibra em sua morte de não-ser, morte aparada pela linha que equilibra a vida entre o vento, o caos, e o desejo de sonhar com um novo e necessário porto.
Agora a imagem do objeto geométrico vez por outra fica como um símbolo na minha lembrança. O papagaio visto do navio na relatividade ensteiniana é apenas o veículo para a sorte da viagem que não paro de fazer sobre mim mesmo. É o meu encontro com a beleza da vida nessa paz amazônica que se espraia em mim. É a vida em rodopio, movimentada e larga, a experiência de um tempo fugaz e embrionário de outros rodopios, de papagaios que me falam de sonhos.
É meu poeta ...
ResponderExcluirA lembrança traz o coração para janela
e vamos assim vivendo á vida !
Bela crônica Fernando Canto