Texto de Hélio Pennafort
Na metade do século passado, a França devia estar cheia de mau elemento. Como se não bastasse às prisões das ilhas de Saint Laurent, Saint Joseph e do Diabo, próximas de Cayenne, as autoridades do continente resolveram ampliar o número de penitenciárias na Guiana e passaram a procurar um lugar mais distante ainda para montar outra, onde seria colocado o excedente das três ilhas. No médio rio Oiapoque, fronteira com o Brasil, encontraram um local que tinha a vantagem de não oferecer a menor possibilidade de fuga. E lá, a 23 de abril de 1853, criaram oficialmente a penitenciária de Saint Georges, que em pouco tempo estava lotada de condenados. Na época, os prisioneiros das ilhas ainda se arriscavam a fugir pelo mar, mesmo com a desestimulante presença de tubarões. Mas de qualquer forma esperavam chegar em algum lugar. Em Saint Georges, porém, o problema era exatamente esse. Não ter para onde ir. A enorme distância da capital da Guiana ou qualquer outro vilarejo era coberta por um tipo de vegetação impossível de ser transposta. Do lado não existia nada. E mais, as embarcações que talvez pudessem utilizar numa escapada não resistiriam as primeiras ondas do Oceano e nem mesmo alcançassem a foz, sendo facilmente recapturadas. Alternativa nenhuma, portanto.
Com a desativação da penitenciária, muito tempo depois, a área de 280 hectares passou a ser ocupada pelo município de Saint Georges. E com ele a França deu início a política de ocupação da parte fronteiriça das suas colônias, empregando recursos e atraindo gente para habitar uma terra mal afamada e pestilenta.
Quem visita Saint Georges, hoje, não acredita que o lugar já foi um dos piores consulados do inferno verde. Apesar de muitas casas ainda manterem características de épocas atrás, é visível a presença do moderno. Não tem asfalto, mas as principais ruas, embora muito estreitas, são todas cimentadas. Por elas trafegam poucos carros e bicicletas. O dialeto patuá é o que mais se escuta, no entanto, a língua oficial é a francesa. Os comerciantes ricos construíram prédios em alvenaria com desenhos apropriados para a região tropical. Em todo o ar só deixa de circular quando o dia é preso pelo mormaço. O prédio da prefeitura é desse tipo e muito confortável. Na calçada, o prefeito Romain Garros conversou quase uma hora com a nossa reportagem. Falando bem português, ele afirmou que todos os recursos do município vêm da França. "Os impostos que arrecadamos aqui não dão para quase nada. Dependemos exclusivamente do governo francês". A população de Saint Georges é pequena, 2.150 habitantes, 90% dos quais se dedica à agricultura e à pesca. A prefeitura possui 35 funcionários e Romain já foi eleito duas vezes. "Para você ter uma idéia, a Guiana Francesa, as Antilhas e outros departamentos (Estados) da França no além mar, recebem recursos maiores que um departamento do próprio continente" - garante o prefeito. A independência proclamada pelas guianas inglesa e holandesa não serviu de exemplo para a francesa. Romain explica: "Tem um movimento muito pequeno que quer seguir a lição das duas guianas. Mas absolutamente não acredito que vá adiante porque o povo da Guiana Francesa não tem tendência de autodestruição. A nossa economia não nos possibilita a independência. E tenho certeza que se houvesse um plebiscito o povo votaria contra esse tipo de emancipação. Ora, não adianta a gente ser independente politicamente e levar uma vida economicamente precária. Como disse há pouco, a França dá um apoio muito maior à sua guiana do que dava a Inglaterra e a Holanda para as duas. Por isso é que houve os movimentos. Além disso, é bom que você veja uma coisa: toda a Guiana tem 65 mil habitantes e desse total apenas três mil são guianeses".
Romain ficou surpreso quando o repórter falou que o cacicó- música folclórica da Guiana - estava nas paradas musicais de Macapá. "Já ouvi a música. Aquilo não é cacicó coisa nenhuma. Cacicó veio da África e o seu ritmo é bem diferente desse que você fala. Estão fazendo confusão. Cacicó não é discoteque, não é música tocada por instrumentos modernos. Usam apenas tambor. E o jeito de dançar também é diferente. Não é ficar pulando no salão, mas executando uma espécie de ginástica, muito complicada para descrever". O turismo está nos planos do prefeito, evidentemente com a ajuda da França. "O governo francês está fazendo propaganda da Guiana para atrair turistas. E o primeiro ponto é espalhar que a Guiana não é insalubre, ruim. Quando se fala em Guiana, na Europa, logo vem o pensamento de prisões, ilhas do Diabo. Então, agora, mostra-se que não é nada disso, que aqui é um dos lugares mais bonitos de todas as possessões francesas. Veja até mesmo os habitantes das Antilhas, que fica relativamente perto de nós, pensavam que aqui só morava incivilizados. Essa má reputação diminuiu bastante com a construção da estação especial de Khourou. Agora eles estão começando a nos ver como terra civilizada".
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Da prefeitura fomos ao bar do Ho-a-Chuk, um velho chinês com quatro décadas de Saint Georges. Disse bar, mas ali vendem perfumes, filmes e máquinas fotográficas, anzóis e caniços de carretéis. Na mesa do canto, dois índios do Curipy bebem "tafiá". Marizio dos Santos e José Faustino deixaram os costumes tribais desde que aprenderam a manejar uma colher de pedreiro. "É um bom ganha pão" - disseram. Como eles, vários índios do Uaçá estão trabalhando em Saint Georges e mesmo em Cayenne. A presença de trabalhadores brasileiros na Guiana Francesa, aliás, não é de agora. Acontece desde 1920. Eles construíram várias casas em Saint Georges e trabalhavam nas diversas usinas de pau-rosa instaladas nos muitos afluentes franceses do rio Oiapoque. Os franceses sempre deram preferência aos operários brasileiros por serem mais especializados e possuírem maior capacidade de trabalho. Quando instalaram as primeiras usinas de pesca, em Cayenne, a maioria das tripulações dos barcos era brasileira e nas fábricas empregavam inclusive mulheres vindas de Macapá. A procura aumentou com a construção da base especial de Khourou, quando milhares de brasileiros foram para Cayenne. Todos ganhavam bem e tinham vantagens. Mas houve sérios conflitos provocados por ambas as partes. De um lado, os franceses acreditavam que todo o brasileiro era um "voleur" (ladrão), o que desagradava a honesta maioria que tinha ido para lá em busca apenas de trabalho. Do outro, a infiltração de maus elementos nas levas de brasileiros era visível durante as arruaças que agitavam a zona da cidade. Quando a situação estava insustentável, e mediante contatos das autoridades francesas com o Itamaraty, surgiu a Operação REBRACA (Repatriamento dos Brasileiros de Cayenne), que retirou da Guiana quase a totalidade dos operários, mesmo os que estavam bem de vida, que acabaram voltando para começar tudo de novo.
Observo o trabalho de técnicos brasileiros na torre da empresa de telecomunicações, quando chega perto a esposa do professor Jean Pierre Martin, a brasileira Elisia, e a professora Raimundinha - simpática morena do bairro do Laguinho -, que leciona no Oiapoque, mas passa o fim de semana em Saint Georges. Elisia diz que "a vida aqui é muito boa para quem quer viver tranquila. Eu era casada no Brasil, depois me divorciei e casamos aqui". Procuro saber se foi difícil adaptar-se num lugar de costumes diferentes: "Não, eu acho que o amor vale tudo. Claro, as vezes dá saudade do Brasil e quando ela chega eu me mando. Este ano passei o carnaval em Macapá e até ensaiei numa escola de samba. E, engraçado, quando chego lá já estranho o comportamento. Você sabe, o brasileiro tem muito preconceito e gosta de dar uma de machão para cima das mulheres. Já o francês não está nem aí. A mulher dele pode estar conversando com quem quer que seja e ele nunca fica imaginando aquelas coisas. Para ele, a mulher tem o direito de ser livre, escolher a vida dela, fazer o que quiser". Fala a Raimundinha: "O meu relacionamento com o pessoal. daqui é maravilhoso. Eu quero muito bem à essa gente. Todos os sábados às sete e meia, venho para cá e me meto no cacicó. Eles ficaram gostando de mim logo na primeira festa que participei aqui. Tocaram um cacicó e eu comecei a dar o meu
Jeito no salão. Todos ficaram olhando e se perguntando: “É brasileira? Não é possível! Dança um cacicó perfeito". Aí eu expliquei que no Curiaú, perto de Macapá, tem um batuque que é muito parecido com o cacicó. Me convidaram para a mesa oficial mas eu recusei dizendo que estava com o meu pessoal". Raimundinha já teve dois namorados e há pouco tempo foi paquerada por um engenheiro eletrônico que queria levá-la a conhecer Paris.
O professor Jean Pierre Martin, diretor da Escola Pública, conhece Belém e outras cidades do Norte. Começou a aprender português quando ainda namorava a Elisia. Leu muitas histórias em quadrinhos e até escreveu cartas para o correio sentimental da revista "Grande Hotel". Fala do seu trabalho: "Tenho 300 alunos na minha escola. A dificuldade maior é que as crianças não assistem regularmente as aulas. Muitas moram longe". Sobre o método de ensino, explica: "As condições intelectuais do aluno são medidas por um conselho orientador da escola. Se porventura é verificada a impossibilidade de o aluno prosseguir os estudos até o curso superior ele é impedido pelo conselho. Nesse caso, então, passa ser orientado para o trabalho, seja agrícola ou qualquer outra profissão. Os alunos da minha escola que são julgados capazes, vão para Cayenne estudar o secundário. Muitos ficam internados porque não tem parente, como é o caso dos índios. Para resolver esse problema, vamos criar o secundário aqui". Segundo o professor Martin, 60% dos adultos de Saint Georges são analfabetos. "Com as crianças a situação se modifica. O índice de aproveitamento é relativamente bom".
As casas comerciais mais frequentadas por brasileiros do Oiapoque pertencem ao Ivo, ao Sebastião Cedia e ao prefeito Romain Garros. Cada franco guianês é trocado por dez cruzeiros. O intercâmbio comercial entre as duas cidades é razoável.
A convivência naquela parte da fronteira é excelente. Romain Garros chama os oiapoquenses de "meus irmãos" e comparece à todas as festividades cívicas que ocorrem do lado brasileiro. A mesma coisa faz o prefeito Augusto Sena, do Oiapoque. O único incidente registrado ali aconteceu em 1952, no Dia Nacional da França, 14 de julho. O pai do repórter (Rocque Pennafort) era prefeito de Oiapoque nessa época e conta como foi: "Estivemos lá, pela manhã, assistindo as festividades cívicas e à noite voltamos para a continuação dos festejos. Tinha baile na prefeitura e cacicó no arraial. Estava acompanhado do delegado de polícia (Delival Nobre, ex-chefe da Casa Civil do governo do Pará), do médico (Dr. Carlos Asclepíades de Lima, hoje oficial da Marinha) e vários funcionários. Noutra embarcação chegaram alguns populares. Estes, incentivados por um guarda sanitário, originalmente apelidado DDT, começaram a beber demais e não demorou muito para começarem a discutir com os crioulos. Quando vimos, estava formado o bolo. Aos gritos de "macumé!", "salópe!" e outras irreverências do patuá, os crioulos revidavam os insultos. Com alguma dificuldade, eu e o delegado conseguimos reunir o pessoal no porto e voltamos para Oiapoque. Antes, fui pedir desculpas às autoridades francesas. O chefe da Gendarmeria sorriu e disse: "Cest pas rien, monsieur le mire, cet un petit incident de frontiere" (deixa pra lá, senhor prefeito, isso é um pequeno incidente de fronteira).
O soldado desconhecido é homenageado com uma praça em frente à prefeitura. Só que ele não é tão desconhecido assim. No obelisco, ao centro, tem uma placa de mármore com os nomes de todos os combatentes da guiana mortos na Primeira Guerra Mundial. Nessa praça são realizadas as cerimônias cívicas e festas populares.
A bebida mais consumida é o "tafiá", 58 graus, que deixa a nossa cachaça com sabor de refrigerante. Para abrandar a fortidão, os garçons trazem junto com a dose um pouco de xarope de groselha e um copo com água gelada. Mesmo assim não adianta. O bebedor de "tafiá" recende a três metros de distância. Vendem também cervejas "Spalthaller" e "Kronenbourg", menos saborosa que a Cerpa. No fim da tarde os bares ficam cheios. Operários, funcionários, políticos, gendarmes, juntam-se para generosos tragos enquanto não chega a hora do jantar, geralmente consumido em grupo. As conversas ficam nos acontecimentos locais. A maioria do povo, entretanto, mantém-se atualizada do que vai pelo mundo através do "Journel de Paris", transmitidos todas as manhãs pela Rádio Difuseur Francais, emissora de onda tropical instalada em Cayenne e muito bem recebida em qualquer rádio à pilha de Saint Georges.
O intercâmbio cultural é também um detalhe interessante que se observa nas duas cidades. Fora a influência do patuá na fala dos índios do Uaçá e dos caboclos da beira do rio, nota-se ainda que os creôlos de Saint Georges dançam com desenvoltura o samba brasileiro da mesma forma como o oiapoquense rebola os quadris ao som dos tambores do cacicó. (Do livro Entrevista ao leitor. DIO, Macapá, 1982) (Imagem disponível em: www.porta-retrato-ap.blogspot.com)
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