Alguém falou assim aleatoriamente que todas as injustiças do mundo estavam naquele peixe exposto à venda municipal. Por segurança o dono da barraca ordenou a sua ajudante que o descamasse com rapidez. Ela apanhou a faca com precisão e habilidade e todos olharam atônitos para as escamas brilhosas, voantes na contraluz matinal depois da chuva. Uma a uma as escamas descreviam elipses na expulsão da pele do peixe que carregava as injustiças do mundo. Uma a uma. Pareciam mesmo descrever uma mensagem em código.
Como os antigos áugures, intérpretes do desconhecido, a mulher foi abrindo peixe, tirando-lhe as guelras e todas as entranhas, sempre falando baixinho. Cortou-lhe as barbatanas com gestos precisos, em mesmo tempo em que seu rosto franzia e a boca balbuciava uma espécie de oração que todos os assistentes puderam perceber. Especulou-se na hora que ela teria tido uma revelação ao observar o ventre do animal. Mais calma tirou-lhe a pele, cortou a espinha dorsal e a cabeça e o filetou todo para depois enfiá-lo em um saco plástico e entregá-lo na mão do patrão. Ela disse: - Pronto patrão. Agora ele é um peixe justo.
Os fregueses foram embora naquela manhã esquisita sem nada levar, mas ninguém, ninguém deixou de perceber que são os peixes que engolem as culpas das paixões dos homens no planeta Fome. (Publicado no livro Equino-Cio – Textuário no Meio do Mundo, Paka-Tatu. Belém, 2004)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por emitir sua opinião.