Publicada no jornal “A Gazeta” de domingo, 13/06/2010
Aquele feriado prolongado caiu como uma cerveja gelada num dia quente.
Iríamos novamente, eu e ela, para a nossa casa de praia curtir a um pouco de calma, já que os filhos e os netos resolveram conhecer outros lugares. A ausência deles doía, pois estávamos tão acostumados que era difícil acreditar que estivéssemos a sós. Vez por outra uma paisagem, uma ponte ou os animais que pastavam ao lado da estrada geravam uma lembrança e um comentário sobre eles. Então fizemos um “acordo” para evitar falar neles, algo meio difícil para nós, tão apegados aos netos.
Chegamos cedo. E após a festa do cachorro e as reclamações habituais do caseiro, fomos à praia, aonde encontramos velhos amigos, para contar novamente antigas e esquecidas piadas e para ouvir as mesmas risadas, agora mais discretas. Foi um dia bom, cheio de novidades positivas e felizes.
De manhã o sol bateu forte na vidraça da janela e se intensificou no quarto. Levantei e não a vi. Depois a encontrei no jardim cuidando das plantas, seu trabalho predileto em nossa casa. Ela estava de chapéu, botas e luvas, com aquelas tesouras, garfinhos e pazinhas alaranjadas, plantando, podando e trocando a terra de uns vasos. E dissecava palavras carinhosas sobre as plantinhas. E me explicava com paciência que a rosa vermelha estava produzindo poucas flores, que a rosa-rosa e a rosa branca precisavam de adubo, que as frutas do pomar estavam esturricadas devido ao calor e outras coisas mais. Falou-me que deveríamos dar mais valor às plantas mágicas da nossa região porque elas protegem a casa e as pessoas dos males dos homens e dos maus espíritos. E discorreu sobre as propriedades místicas do tambatajá, dos tajás rio negro, rio verde, boto e onça, de outros tantos e, principalmente, do comigo-ninguém-pode, que é uma espécie de aninga, explicava.
Não tive mais nenhuma dúvida. Peguei a camionete e fui comprar adubo e terra preta na vila. Ela aproveitou para adquirir novos pés de plantas, que eu até ignorava que existissem. Trabalhamos pesado o dia todo. Eu e o pobre do caseiro que sempre descuidava do jardim da patroa. Consertamos cercas, fizemos leiras, limpamos as varandas, a área de lazer e a piscina, colocamos os colchões de mola para desumidificar ao sol, consertamos móveis antigos e polimos a enorme e pesada mesa de mogno onde toda a família e os amigos se reuniam para almoçar. Depois de tudo limpo e no seu devido lugar fomos jantar. Então ela falou que tinha algo muito importante a me dizer. Enquanto eu imaginava o que fosse ficou no ar o cheiro encorpado de ovo frito quando ela o tirou da frigideira para me servir. O prato de porcelana inglesa - herança dos seus pais – era antigo como o sino da igrejinha da vila. Parecia um gigantesco tacho de comida aos meus olhos, tanta era a fome que eu sentia. Educadamente me contive até ela pôr o prato sobre a mesa. Percebi que no seu olhar sobre meus gestos havia admiração e certa censura. Aquilo foi me encabulando aos poucos, não consegui terminar de comer a omelete, que, aliás, era a única coisa que cozinhava bem. Ela percebeu e me disse: - Coma devagar. Não vou ficar aqui te olhando. E saiu da cozinha.
Na rede da varanda a gente olhava a lua imensurável aos nossos olhos, em silêncio. Até que ela falou: - Obrigada, amor, foi um dia puxado, mas recompensador. Lembra-se disto? Disse-me mostrando um anel de ouro e brilhante, envelhecido. - Encontrei-o ao trocar a terra de um vaso quando meditava sobre o que tem sido a minha vida ao seu lado. Eu agradecia a Deus por ela ser tão cheia de desafios, de vitórias e de superações e por ser prenhe de amor e de perdão, justamente quando arranquei um pé de quebra-pedra e esmaguei a terra de suas raízes. Eu estava sem as luvas de borracha, pois tem hora que elas incomodam, e de repente aquele anel sujo parecia querer se alojar novamente no meu dedo. Foi um dia feliz porque recuperei um objeto que faz parte da nossa história, meu anel de noivado, que você me deu e que eu havia perdido durante a construção desta casa, lembra? Ah, eu tinha chorado tanto e agora ele volta para o meu dedo assim... Tão simples.
Eu a deixei chorar de alegria, um aparente gesto de fragilidade no rosto de uma mulher tão forte e corajosa. Apesar de estarmos cansados, conversamos abraçados a noite inteira, falando da vida, das coisas que vão e que voltam mesmo quando nem imaginamos e, claro, dos netos e filhos, tão inteligentes e bonitos. Então o sol chegou como um imenso anel de brilhante para iluminar nossa história de amor e os sonhos que sonhamos para quem amamos, nos embalando na rede da varanda da nossa casa de praia.
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