quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O sabor e o saber (*)

MILHO, “A PLANTA BASTARDA”
Por Fernando Lokschin (**)
                                                                                
           Na geografia do alimento, a Ásia é arroz, a Europa é o trigo e a América antiga e moderna, é o milho.

A múmia de juanita, menina sacrificada pelos incas ao deus da montanha, tinha no estômago uma sopa de verduras com milho, sua última ceia. Junto a seus objetos de adorno, havia um pote de chicha, aguardente de milho, e um prato com espigas de milho. E foi aos pés dos Andes, jazigo de Juanita, que Darwin coletou amostras fósseis de milho, ele mesmo um dos primeiros a sugerir a origem americana do grão.
Na geografia do alimento, a Ásia é arroz, a Europa, trigo, a África é inhame, e a américa antiga e moderna, o milho. O primeiro vegetal cultivado na América foi um ancestral da abóbora, uma “avóbora”, mas há 7 mil anos já havia milharais nas áreas do Peru e do México. A cultura do milho foi uma das causas do fim do nomadismo e início da organização social no continente. Maias, incas e astecas se constituíram em torno do milho, comparavam-se a grãos reunidos num sabugo, numa união que fazia a força, força que fazia a união.
De pai desconhecido, o milho é chamado de a “planta bastarda”. Parece ter nascido no sul do México, num cruzamento do teosinto, gramínea que é praga nas plantações. O milho é uma grama gigante, há variedades de 5 metros. As espigas têm um número sempre par de fileiras de grãos recobertos de um envoltório de membranas. Os grãos não se liberam espontaneamente, deixados ao natural apodrecem sem germinar. O milho não se reproduz por si, sua existência depende da mão humana.
Até 11 centímetros no dia, o milharal cresce rápido – há quem jure ver o desenvolvimento da planta. O milho é um vegetal que emite sons; o deslocamento das folhagens produz estalos, murmúrios e a mítica de deuses invisíveis nas plantações.
Colombo teria sido o primeiro europeu a comer milho; o seu diário (05/11/1492) cita a planta “que alimenta as gentes daqui” com “espigas do tamanho de um braço”... “repleta de grãos semelhantes a ervilhas”... “de ótimo sabor seja cozidos grelhados ou reduzidos a pasta”. Diego, seu irmão, registrou um cultivo sem precedentes: caminhou 29 km em meio a uma única plantação.
Naquela época já havia variedades adaptadas a cada clima do continente. Os ameríndios aprenderam que sacudindo a flor masculina de um pé sobre a flor feminina de outro, a fecundação do pólen borrifado criava novas plantas com atributos mesclados. Meio milênio dessa engenharia genética transformou o milho numa superplanta que maturava em 90 dias, suas espigas cresceram de um para 20 centímetros e tornaram-se capazes de dar tanto o sustento como uma sobra para troca, o alicerce do capitalismo local.
Cabral não encontrou milho em seus dez dias em Porto Seguro, nas na descrição da passagem de Fernando de Magalhães pelo litoral brasileiro (1519), Pigafetta registrou o termo miglio. O milho que foi para a África e China saiu do Brasil. A palavra tupi para milho, abati, deriva de aba, “cabelo, pena”, e invoca as sedas da espiga. A palavra foi aproveitada quando os índios conheceram o arroz, abati-i (‘milho d’água’) e o trigo, abatinga (‘milho branco’).
Colombo levou para a Espanha o milho que, no decorrer de uma geração,se espalhou pelo mundo. Carlos X proibiu que o milho alimentasse cristãos, era comida pagã e selvagem. No Gerard Herbarium (1957), “... não conhecendo nada melhor, os índios bárbaros gostam do milho, porque transformaram a necessidade em virtude”. Diferentemente do tomate e da batata, o grão nunca caiu no gosto europeu, seu destino era o animal. O exemplo é a Irlanda famélica devido a uma praga nas batatas, recusando o socorro do milho, e a exceção é a polenta italiana, onde o milho substituiu todos os grãos europeus.
É preciso um casal para nascer uma criança, mas basta uma planta para brotarem muitas. Os nomes dos cereais decorrem desta fertilidade: de um grão de trigo germinariam três, do centeio, uma centena, e do milho, nada menos que mil. o nome não exagera, cada grão gera até quatro espigas que podem reunir, cada uma, até mil grãos. A palavra milho é neta de mil e filha de milhete (L. millet), o sorgo, forragem animal Maiz, o termo espanhol, significa “o que nos dá o sustento” em aruaque haitiano.
Para os nativos, o milho, a abóbora e o feijão eram “as três irmãs”, nasciam e cresciam juntas. Este trio trabalha em equipe a favor do solo e do homem. A abóbora impede o crescimento de ervas daninhas, e o feijão fixa o nitrogênio nas raízes. O milho é pobre em vitamina B, mas os nativos não sofriam de pelagra como os povos que dele se tornariam depois dependentes: a abóbora (e o preparo nas cinzas) dava a vitamina, e o feijão, a proteína. Sem as irmãs, o milho não poderia ter sido a base alimentar dos povos americanos.
O aproveitamento extra-alimentar do milho se iniciou cedo: o grão era conta de adorno, a folha, rica em glicose, goma de mascar, e a palha, a matéria prima de esteiras, roupas, cestas, chapéus, sapatilhas e colchões – no colchão de palha (de milho) do inca passaram a dormir os conquistadores, daí o palhaço de roupas feitas do forro. O europeu logo encontrou novas utilidades: forçava o herege a engolir grande quantidade de grãos com água e amarrava-o nu ao sol para que a barriga explodisse. Ajoelhar sobre grãos de milho foi um recurso educacional até a poucas décadas.
O sabugo é cachimbo, rola, bóia, escova, esfregão e papel higiênico – “eficiente e confortável”, assegura um texto de 1921. O índio ensinou o caboclo a fazer bonecos de sabugo: no Sítio do Pica-Pau Amarelo, o Visconde de Sabugosa era escolhido para as missões suicidas porque poderia ser reconstruído.
Os maias se consideravam “filhos do milho” – uma verdade, até sua astronomia e calendário eram centrados na planta. O milho foi adorado como um deus em toda a América; ritos e danças invocam a liturgia do plantar e colher. Os jesuítas se queixavam que para o índio a eucaristia não estava na missa, mas na roça. A safra inca se iniciava quando a chincha, a mesma de Juanita, junto às virgens que a prepararam, eram oferecidas ao chefe. O plantio, como toda a germinação era obra feminina. Cabeças de peixe eram enterradas junto às sementes – tradições míticas a serviço da adubação com fósforo. Os astecas se sentiam “milhos ambulantes” – sua palavra para ”milho”, toneuhcayotl, quer dizer “nosso corpo” – e ficaram estupefatos com os espanhóis alimentando cavalos com os grãos. O mexicano  honra a tradição Asteca e se considera um subproduto biológico e cultural do milho: só de tortilhas, consome 180 kg ao ano e até o  huitlacoche (‘excremento de corvo’), o fungo da espiga, é recheio. O milho foi o pano de fundo das rebeliões de Pancho Villa e a Emiliano Zapata – Sin maiz no hay pais.
O corpo e alma do México é o bolso dos Estados Unidos, onde 14% do território é ocupado por milharais, o dobro da área do Texas. O destino principal do milho é industrial. O milho faz tudo o que o petróleo faz, são mais de três mil produtos: colas, tintas, lápis, plásticos, congelados, óleos, sucos, concentrados, etc. A doçura dos sorvetes e refrigerantes dietéticos ou não, vem do milho. Se as folhas antes eram cobertura e isolamento os modernos revestimentos de papeis de parede usam os grãos na estrutura, cor, brilho, impermeabilização e cola. Na indústria do papel, só não recebe milho o papel-jornal e o papel higiênico, uma ironia, visto o uso histórico na toalete dos índios e conquistadores.
A maizena (< maiz) surgiu numa fabrica de tecido e hoje é pertence a Unilever, corporação nascida no sabão. A Colgate começou como empresa agrícola: pasta de dentes, sabonetes, xampus e cremes são ricos em milho.
“O que é que da um pulo e se veste de noiva?” pipoca é uma palavra tupi, os índios estouravam grãos de milho no braseiro; pipocar significa surgir aqui e acolá tal a pipoca aos pulos. O pulo da pipoca em um incêndio acidental fuga do espírito do grão espantado pelo calor do fogo, foi o salto inaugural de toda agricultura no continente.  A pipoca tornou-se “grande droga familiar americana” graças a recessão (passatempo do bolso vazio), guerra, (racionamento do açúcar, confeitos e chocolates) e televisão (o ver junto ao comer). A pipoca passou da frente para dentro do cinema na Grande Recessão, quando o público encolheu e tudo teve de ser feito pra diminuir prejuízos. O Americano come o seu peso em pipoca de microondas, um concentrado de gordura hidrogenada – o que inclui o cinema da coca e pipoca como um risco a saúde (e ao bom gosto). Pode-se dizer que o tabaco, a cocaína e a pipoca constituem a vingança tardia de um continente derrotado.
A cozinha nacional herdou a tradição afro-indigena do milho no angu, pão de milho, broa, cubu, mingau e canjiquinha, antes o arroz do pobre, e a imigração italiana trouxe a polenta. Antes da pizza e pasta, a Itália pré-romana já comia a polenta feita do grão disponível: centeio, espelta ou sorgo. O milho de fertilidade tão maior que os cereais europeus, assumiu a polenta tornando-a o sustento do italiano do norte, os polentoni. A polenta era o alimento quase único na época, região e classe social dos italianos que imigraram para o Brasil. Num texto de 1886, tais disobbligati” (diaristas) “trabalhando 14 horas por dia comem pão com sopa uma vez por semana”... “sobrevivem da polenta a qual adicionam, às vezes, cebolas e mau queijo”, sendo que no inverno “as refeições podem se reduzir a uma”. Não é à toa que pelagra é uma palavra italiana. Mais posses, mais guarnições menos pelagra: cebola, mau queijo, bom queijo, ossobuco, manteiga, alhos figos nozes, trufas, cogumelos, mortadela e inclusive bacalhau complementam a polenta. Tal o nosso galeto, era tão comum a polenta com aves que os venezianos chamavam a pura de polenta e osetiiti escapai, “Polenta e passarinho que escaparam”... Mas a polenta dá com tudo há até o apelido de Traviota, tal Violeta, uma cortesã que acasala com o disponível. E contam da bonita veneziana que costumava passear de gôndola com Lord Byron, mantendo sua polenta bem aquecida entre os seios. O Byron, poeta, degustava in loco ...



RECEITA DA “POLENTA VIOLETA”

500 ml de caldo de ralo de galinha com água mineral e manteiga
80 g de farinha de polenta
20 g de parmesão recém-ralado
Sal e pimenta
5 fatias de gorgonzola
Modo de fazer:  ferva o caldo, vá  despejando a farinha mexendo sempre até o ponto de forma (40 minutos). Acrescente o parmesão, sal e pimenta. Despeje em pratos individuais, ponha a fatia de gorgonzola no topo. Decore com ramos de verdes e sirva como entrada.

(*) Publicado na Revista Estilo Zaffari. S.d.
(**) Fernando Lokschin é médico e gourmet (fernando@vanet.com.br)

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