quarta-feira, 23 de setembro de 2009

PRODUÇÃO DA ARTE AMAPAENSE

Texto apresentado por ocasião do Seminário de Arte Amapaense – SAPO, em 17.04.86 por Fernando Canto


Tela de R. Peixe. Acervo de Fernando Canto

"A arte é uma produção; logo, supõe trabalho".
(Alfredo Bosi)
"O homem tem na inteligência a possibilidade permanente para modificação."
(Câmara Cascudo)
"Sim, eu quero saber. Saber para melhor sentir, sentir para melhor saber."
(Cézzanne)

Eduardo Galeno, no início do seu famoso trabalho “As Veias abertas da América Latina” fala que na divisão internacional do trabalho existem dois lados: Os países que se especializaram em ganhar e os que se especializaram em perder. E, inevitavelmente, como latinos, trazemos o estigma da dominação, da espoliação conseqüente e da própria depauperação econômica, política e social que veio gerar o que chamamos de identidade cultural. Aliás, conceito hoje dado e usado a partir de um ponto de referência (exterior) que faz promover a diferença e nos caracteriza como povo, se bem que estejamos latentemente vestidos com roupas ufanistas para não admitirmos a condição de alienados e para alimentarmos estereótipos que nós mesmos criamos. “No Brasil somos um povo alegre”, dizem uns. “O brasileiro é malandro, gosta de samba e Futebol”, dizem outros. Porém é necessário aprender que não basta dizer simplesmente que somos diferentes, é importante mostrar em que nos identificamos.

Desta forma é que ao tentarmos abordar o presente tema, tomamos o cuidado de levar em consideração a questão da identidade cultural, pois, a nosso ver, todas as dificuldades encontradas para uma análise coerente da questão, estão pautadas na formulação de conceitos paralelos e na historicidade de fatos que nos leva a discutir pela primeira vez com seriedade e sem paixões as características principais da produção artística amapaense. Entretanto, falar em arte amapaense, também significa discorrer sobre a homogeneidade regional a partir das suas semelhanças históricas culturais e ecológicas, pois, a bem da verdade, somos, os amazônidas, o mesmo povo sofrido, abandonado, isolado e pobre, onde as ligações principais com o resto do País são apenas a língua e o infortúnio, porém unidos por símbolos patrióticos que nos tornam brasileiros, todos vítimas conscientes da propaganda e explorados nas nossas riquezas.

Embora nos esforcemos procurando um conceito que expresse a realidade, a arte amapaense continua existindo na paisagem como um detalhe obscuro, raramente percebido por algum observador atento.

Precisamos ser realistas. Somos uma placa cultural insignificante, afixada e pisada diariamente no vasto plano criativo do país.

Em que pese a crua realidade, a arte amapaense é mais um símbolo representativo da divisão do trabalho, existente em qualquer sociedade, do que um fazer, do que um conjunto de atos pelos quais se muda a forma, se transforma a matéria oferecida pela natureza e pela cultura.

Nessas condições é que procede a afirmação de que a produção local de arte é pequena, de baixa qualidade e carece de aperfeiçoamento. Não obstante os esforços individuais e as lições do passado, percebe-se a fragmentação de alguns setores artísticos gerada, sobretudo pela falta do aperfeiçoamento e de aprofundamento da identidade cultural, além da inércia, da megalomania e de um xenofobismo arraigado de artistas que se organizam em grupos com visível intuito lucrativo. De cima da escada, falsos artistas bradam suas conquistas, criando novas escolas, jactantes, mas que não percebem a necessidade de estender – se à universidade técnica, procurando também o aprimoramento intelectual a partir de novas visões de mundo, sem precisar ser essencialmente um freqüentador de academias ou um asceta. É preciso conhecer o "outro lado", como criticava os gregos Heródoto, ao constituir exemplo da emergência de consciência crítica. Outras visões de mundo são importantes, pois "não há teorias, dizia Lênin, mas visões de mundo".

No quadro geral, pensar e pesar são as medidas para que se busque o aprimoramento artístico e a conseqüente produção de obras respeitáveis. Se arte é um trabalho que exige a atenção de todos os sentidos, se faz necessário afirmar que no Amapá somos mais artífices que artistas, apesar de mascarados pelo status causado pela eterna competição do trabalho intelectual versus trabalho manual. Pouco pensamos. A sociedade, que também não despertou o inconsciente, avaliza a situação, pois ainda que reconheça a agudez do espirito do artífice (mais humilde), dá mais valor ao artista. E todos querem ser artistas, nunca artífices.

Não nos cabe falar da importância do papel que as artes desempenham no desenvolvimento da mente do homem, preparando – o para criar novos instrumentos, mas sim que é mediante as artes que a cultura se realimenta a partir da observação básica da existência do potencial de energia contido no inconsciente coletivo. Ao artista cabe o ofício de condensar essa energia.

Quem pesquisa para aprimorar sua arte? Quem se esmera para criar arte respeitável e receber um digno valor pelo seu trabalho? Quem? O artista plástico quer ver sua arte admirada, o escritor quer ver seu livro publicado, o músico quer audiência quando executa seu instrumento. Mas poucos artistas amapaenses vão à luta, aprimorando-se paralelamente. Enquanto isso, dentro de casa, a maioria torna-se cada vez mais provinciana e envolvida numa redoma.

Como modificar o quadro e condensar essa energia? Precisamos realmente refletir sobre a existência de uma arte amapaense. Acreditamos que para tanto temos que fazer uma retrospecção para tentar abstrair conceitos seguros.

É perigoso até entrarmos nessa questão pela possibilidade de cometermos injustiças sermos mal interpretados já que o assunto pode tanger a suscetibilidade de certos artistas. Mas como roupa suja se lava em casa e a nossa proposta é sermos sinceros e isentos de paixões, continuemos.

Nos fins do século passado, com a fundação do primeiro Jornal amapaense, o "Pinsonia", destacou-se um poeta de grande sensibilidade chamado Francisco de Mendonça Júnior que tinha o pseudônimo de Múcio Javrot. Na mesma época o poeta Vaz Tavares mostrava seu talento em Belém. Anos depois com a transformação do Amapá em Território o primeiro governador trouxe para cá intelectuais, artistas e trabalhadores para "construir uma civilização sob o equador". Entre eles figuravam o pintor Aloísio Carvão, os poetas Álvaro da Cunha e Arthur Marinho, o maestro Oscar e outros. Mais tarde chegaram Alcy Araújo, Ivo Torres, R. Peixe, Espírito Santo, Aracy Mont'Alverne, Nonato Leal, Amilar Brenha e uma gama de produtores de arte que aqui estiveram e participaram ou ficaram definitivamente.

O Amapá foi crescendo. Sua capital encheu- se de modernos aparatos urbanos. Os filhos dos pioneiros e dos nativos aqui estudaram e completaram seus estudos em outras regiões do país. Muitos voltaram para colaborar com o desenvolvimento da arte local, paralelamente às suas atividades profissionais. Quem achava que possuía talento tornava-se autodidata e era estimulado pelos que começaram a militar na imprensa. Formaram-se grupos teatrais com Cláudio Barradas e Creuza Bordallo, foram criados grêmios literários e Jornais nos colégios. Surgiram movimentos artísticos, com exposições de artes plásticas, lançamentos de livros, concertos musicais, espetáculos de dança, mostras de artesanatos, etc.

Alguns artistas de talento, reconhecidos nacionalmente como Manoel Costa, Vicente Souza e Aloísio Carvão, fugiram do diletantismo e da empolgação, se aprimoraram e se firmaram no cenário artístico nacional.

Assim procede a pergunta: Existe uma arte amapaense ou uma arte de amapaenses?

Com 43 anos de criação o Território do Amapá ainda é dependente, se bem que a história do isolamento geográfico não constitui a "grande barreira" do desenvolvimento cultural, mas sim um obstáculo política e administrativamente ultrapassável se levarmos em conta que todos precisamos nos aprimorar, nos libertando dos preconceitos de dominados e partindo para enfrentar a realidade mesmo que ela seja áspera, para que nos tornemos mais sérios, até que Macapá seja um centro cultural digno daquilo em que nos identificamos no contexto da Amazônia e do Brasil.

A arte amapaense pode aflorar do conhecimento dinâmico. Pode brotar com o beneplácito de todos, através do trabalho e da seriedade de uma luta organizada. Ninguém vai nos dizer que estaremos radicalizando se estivermos nos libertando, nos desalienando de uma conduta errônea e mal orientada. O homem e a natureza estão aí para serem observados e a inteligência do artista está funcionando numa perfeita harmonia com a natureza. Portanto, precisamos aliar a coragem do trabalho com o talento desprovido de farsas para buscarmos no futuro a existência de uma verdadeira arte amapaense, produzindo e consumindo algo mais que nossas próprias dores.

Agora podemos passar para a questão do apoio institucional, e perguntar sobre o papel do Estado no aperfeiçoamento do produtor de arte.

A atividade artística pode ser considerada uma atividade política. De um lado a partir da argúcia e do talento do artista. Toda vez que o Estado articula apoio à arte, está na realidade, manipulando uma relação de poder, de cujas teias o produtor de arte dificilmente sairá se não tiver a visão necessária para juntar os filamentos e condensar a energia vinda do social. É dever de a instituição Governo preservar a herança cultural de um povo. Nós aqui do Amapá, contudo, sabemos e sentimos o quanto a cultura tem se tornado mais um instrumento de conservação do que de transformação, pois o apoio financeiro e técnico tem sido tímido e a prática de estimular valores artísticos tinha sempre e caráter de dar alguma satisfação à sociedade e de preencher relatórios das Secretarias. O importante e vital apoio da administração amapaense à classe artística existe incipientemente. Há, também, um certo estímulo e boas intenções na maioria das vezes barradas pelos burocratas das Coordenadorias Setoriais de Planejamento que sempre dizem: - Não tem verba para isso... Como se não houvesse um planejamento orçamentário dos órgãos responsáveis pela cultura. Na verdade esses órgãos não têm autonomia e sofrem uma superposição política que castra as mais importantes iniciativas.

O favorecimento de alguns em detrimento de muitos talentos não é uma prática exclusiva do Amapá. Em toda parte existe tráfico de influência, barganha e negociações sub – reptícias no meio artístico. Aqui houve muito disso. O Governo quase sempre só beneficiava aos amigos ou aos que se submetiam às suas vontades.

Hoje, quando nos preocupamos mais vigorosamente com os problemas da arte no Amapá temos que levar em consideração a independência criativa que os novos tempos proporcionam e buscar fontes alternativas de produção das áreas artísticas, mas nunca deixando de nos aperfeiçoar, criando e criticando o que nos rodeia para que possamos nos orgulhar de ter uma genuína arte amapaense.

Bibliografia

BENOIST, Luc. Símbolos, Signos e Mitos. Belo Horizonte, Interlivros, 1976.

BOSI, Alfredo. Reflexões sobre Arte. São Paulo, Ática, 1985

CASUDO, Câmara. Civilização e Cultura. Volume I, Rio, INL/José Olímpio, 1973

FURTADO, Celso. Criatividade e dependência. Rio, Paz e Terra, 1978

_______________. Cultura e Desenvolvimento em Época de Crise, Rio, Paz e Terra, 2ª Edição, 1984.

GALEANO, Eduardo. As Veias da América Latina. Rio, Paz e Terra, 20ª Edição, 1983.

GONZALES, Horácio. O que são Intelectuais. São Paulo, Brasiliense, 3ª Edição, 1982.

ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo, Brasiliense, 1985.

Obs.: Este texto, escrito em 1986, descreve o panorama artístico que o autor percebia em Macapá. Muita coisa mudou. Mas será que foi tanto assim?

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