Quantas histórias não contam sobre aqueles que morrem logo depois de se despedirem? Parece que sentem que foram sentenciados a cumprir a pena capital. Então suas histórias atravessam o tempo e se desenham no espanto de familiares e amigos.
Assim foi com Bazinho, o simples professor Erivan Batista. Simples no vestir e na modéstia, mas um esplendoroso pensador sobre as coisas da Amazônia, pois traduzia na prática diária a esperança de dias melhores para as crianças da Escola Municipal Roraima e as envolvidas nos projetos culturais da escola de Curralinho, da área do Quilombo do Curiaú.
Da labuta dos dias tirava a poesia das composições que estava prestes a gravar em um CD, projeto pessoal a que se referia recorrentemente. Falava do folclore, da natureza e dos homens como ele, oriundos de humildes aglomerados de afrodescendentes desta vastidão amazônica: produtos históricos de nebulosos eventos colonizatórios, de cruéis processos de construção e de abandono dos poderosos. Aos quarenta anos Bazinho tentava romper o estigma da educação formal ao levar, como professor, a música como irresistível instrumento educacional para as crianças da periferia da cidade, tentando oportunizá-las a terem sonhos mais amplos e mais bonitos.
Embora cantasse suas músicas nos encontros semanais com amigos, ninguém se preocupou em gravá-las. Apenas ele sabia as melodias do seu sonhado CD. Entretanto, a morte veio fazer-lhe a visita no meio da noite, engendrando em seus sonhos todas as angústias e o engano prolongado até à agonia do último alento. Veio envolta em uma cortina sombria, talvez a cavalo, pois certamente, lá fora, o barulho dos carros da cidade eram os tropéis equinos que ouvia nas pradarias das fazendas obidenses ou, quem sabe, alucinantes motores dos barcos que acompanham o Círio fluvial de Nossa Senhora de Santana. Na beira do Amazonas os fogos estariam a explodir, rasgando o véu da noite como estrelas diáfanas, efêmeras, mas que por belos momentos deixaram suas marcas nas íris dos fiéis. E ela veio rápida, incisiva e abrupta, para interromper a música da vida.
Nas vezes que esteve em minha casa falava sempre em nossa terra natal. E por duas vezes cantou e acompanhou ao violão os hinos da Santa na sua peregrinação à Macapá, onde inclusive, um dos mais alegres cânticos era de sua autoria.
Tive grande satisfação em encontrá-lo em Óbidos em minha visita de encontro com a memória, em julho. Estava na Praça do O em companhia do meu amigo Eduardo Dias. Daí em diante tornou-se companhia agradável em vários momentos de minha estada ali, como no baile da Arpa, na Alvorada e nos bingos da Barraca da Santa. Não posso esquecer quando subimos a Serra da Escama, juntos com Alacid e Eulice, pelo puro prazer de "explorar" um ponto quase inacessível da bela Cidade Presépio. E ele ali nos ajudando na subida íngreme; na chegada ao topo, onde repousam os canhões abandonados da Fortaleza Gurjão; e na descida, empurrados pela lei da gravidade. Depois a espera em vão da bajara contratada para nos buscar e a providencial canoa do menino que ouvira nossos gritos do outro lado do lago. Em seguida o andar equilibrado nas estivas até a recompensa de banhar-nos nas gélidas águas do igarapé Curuçambá.
Descubro mais tarde que esse topônimo pode ter seu significado nas palavras "curuçá", que era como os índios pronunciavam cruz, e em "abá", designação para o índio, o homem, a pessoa. Seria então, ouso dizer, "a cruz dos homens", aonde possivelmente uma história de dor tenha ferido aquele paraíso amazônico, onde todos nos banhamos e não fomos nunca mais os mesmos depois disso. No lugar, creio eu, rondam quebrantos e mistérios, entes, elementais, caruanas e anjos, estes que talvez tenham anunciado a chamada de Bazinho para o Oriente Eterno.
Então ele partiu para a noite insondável em busca do renascimento, cujo ciclo Buda comparou a uma chama sendo passada de uma vela para outra, em vidas que se iluminam sucessivamente, como o sol que se acende no horizonte; faz seu giro, morre em nuvens de sangue e volta triunfante em sua luz.
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