Juraci Siqueira http://blogdobotojuraci.blogspot.com
O ROUBO DA BUNDA
À época eu trabalhava no açougue do João do Roque que também era dono de um matadouro localizado às proximidades da Fortaleza de São José, tempo em que a orla da cidade era povoada por palafitas que iam da fortaleza a baixada do Elesbão.
Era nesse aglomerado de barracas construídas na praia que se destacava o matadouro aonde o gado, chegado de canoa, era desembarcado com a maré alta e mantido em currais de madeira até o momento do abate.
Certa noite ouviu-se fortes mugidos vindos das bandas do curral, fato que ninguém deu muitas importância, já que era comum uma rês cair e ser pisoteada pelas outras na disputa pelo espaço. Mas como os gemidos continuaram noite a dentro o vigia resolveu verificar o que estava acontecendo. Pegou a lanterna e dirigiu-se para o local de onde vinham os mugidos. O que viu foi simplesmente chocante: um novilho sobre uma poça de sangue debatia-se sem a metade da “bunda”, retirada à faca, provavelmente por um canoeiro, dos muitos que encostavam no trapiche do matadouro para embarque e desembarque de mercadoria. (Antonio Juraci Siqueira, Acontecências – crônicas da vida simples. Edições Papachibé, Belém, 2010).
MAIS DUAS CRÔNICAS DO BOTO JURACI SIQUEIRA
O BÊBADO E A CADELINHA
Em memória do poeta Isnard Lima, personagem desta crônica
1974. Não lembro nem dia nem mês. Talvez setembro, talvez outubro, mas, seguramente, uma segunda-feira – sempre tão iguais em seus bocejos, ressacas, vestidos de orgia...
Cheguei ao local de trabalho ainda no lusco-fusco. Sentei-me no patamar da escada que levava ao sobrado onde residia meu patrão e fiquei esperando o Sol, ébrio de luz, pincelando o horizonte com um róseo-alaranjado, inibindo, pouco a pouco, o esplendor da Estrela D’alva. Ao meu lado uma cadelinha que perdera uma perna sob as rodas de um caminhão, aguardava a hora de entrar na casa fazendo festa ao primeiro que lhe surgisse à frente. Subitamente minha atenção voltou-se para uma silhueta humana que caminhava em nossa direção ao longo da Rua Jovino Dinoá. Parecia um bêbado, suspeita confirmada quando a distância entre nós diminuiu. Ao passar por nós, a cadelinha foi ao seu encontro sacudindo festivamente a cauda. Sem esboçar um só gesto de espanto ou agravo, ficou ali, parado, contemplando-a. Abaixou-se, afagou-lhe a cabeça e dirigiu-lhe a palavra. Levantou-se. De súbito seus olhos desceram até o defeito físico do animal. Voltou à posição anterior, tomou a cadelinha nos braços e baixou a cabeça...
Os primeiros raios do sol daquela segunda-feira equatorial alumiaram, no rosto daquele anjo, duas pérolas cristalinas que rolaram até o chão, misturando-se ao resto de orvalho que a noite derramara no asfalto.
Levantou-se em silêncio e retomou a caminhada. Se a cadelinha entendeu alguma coisa, não sei. Sei apenas que passou a segui-la, passo a passo, até sumirem na esquina próxima.
O ENFORCADO
Antiga Doca da Fortaleza em tela de J. Sales (Acervo pessoal)
Eu trabalhava numa padaria próxima de casa onde meus irmãos e outros garotos da vizinhança pegavam pão para vender mediante comissão. Na época havia um grande movimento de embarcações na Doca da Fortaleza, formada pela foz de um igarapé, na época ainda não era canalizado. Havia grande disputa entre os meninos vendedores para pegar os pães da primeira fornada, lá pelas cinco da manhã, pois quem chegasse primeiro até os canoeiros tinha venda garantida. Geralmente disputavam a primazia na base da porrinha ou do par-ou-ímpar. Jorge, meu irmão caçula, o Cebinho, neste dia tirou a sorte grande e saiu na frente com seu saco de pães às costas. Minutos depois estava de volta com todos os pães e, fazendo jus ao apelido, pálido que só uma vela. Indagado pelo porquê da desistência, falou que estava com dor de dente e que iria esperar o próximo garoto para saírem juntos. Em verdade o que o Cebinho queria não era companhia, era uma testemunha que, pela ordem de saída, recaiu no Rubinho. Às proximidades do Mercado Municipal, bate no ombro do colega e aponta para um poste de iluminação pública. Foi uma carreira só! Os dois chegaram apavorados na padaria afirmando que havia um homem enforcado pendurado num poste. Alvoroço geral! Todos correm para ver o defunto e voltam de lá morrendo de rir: o morto em questão era um baita Judas de Sábado de Aleluia que alguém, deixara à noite em cumprimento à tradição popular.
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ResponderExcluirLembro como se fosse agora. Eu, Magno, Paulo filho do Lourival Vassoureiro, Raimundo Caroceiro, e o José Bernardo que hoje é médico. Tinha ainda o Guaribinha, que vivia tossindo e é irmão do Zeca Bernardo, aquele que é médico.
ResponderExcluirCada um de nós pegava cinco ou seis troncos de aninga, atravessávamos com dois pedaços de ripa, estava pronta a jangada. Era só deitar em cima e remar com pés e mãos, feito surfista. A saída era sempre do matadouro do Miguel Pinheiro. Íamos em direção ao canal de dentro, que passa a uns dez metros da cabeça do trapiche. Quando a Pedra do Guindaste ficava para trás, é que voltávamos e tomávamos a direção do Igarapé da Doca da Fortaleza. O Estaleiro e o Del Pillar serviam de Baliza. E a Fortaleza era linda vista por nós, dez ou quinze moleques deitados em cima de coceirentos pedaços de aninga, com as pernas sangrando pelas mordidadas de candirus e outros que mais.
Dizem que um certo Vicente Ianez Pinzón já brincava disso antes de nós.
Ele e um tal de Estácio Vidal Picanço.
Antes de nós?
Eu, Guaribinha, Paulo Vassoureiro, Budico, Cheira?
Duvi-Dê-ó-dó!