Publicado no jornal “A Gazeta” de domingo, 21/11/10.
A emoção de entrar no prédio da escola Barão do Rio Branco depois de alguns anos me acendeu a memória e me revirou os sentidos.
Ao chegar lá para dar depoimento, como ex-aluno, a um grupo de universitários do IESAP que fazia um trabalho sobre a pedagogia ali empregada, pude contemplar o busto de cimento do patrono da escola, José Paranhos da Silva, em um pedestal no início da escada à direita. Ele parecia sofrer com os olhos apertados mirando a outrora pacata Avenida FAB e a praça que leva seu nome em homenagem a grande vitória na questão do Contestado, a 1º de dezembro de 1900, o famoso Laudo Suiço.
O busto mostrava as cicatrizes do tempo, visíveis pelas emendas e consertos causados por acidentes, afinal milhares de crianças e adolescentes desceram e subiram as escadas com suas algazarras bem peculiares da idade. A seu lado o busto de Cabralzinho marcava presença como o elemento que determinou, com sua proeza, o início e o fim de um processo que há séculos se arrastava entre o Brasil e a França. Francisco Xavier da Veiga Cabral com seus vastos bigodes e cabelos partidos ao meio rugia em silêncio sua dor da incompreensão. Estava cego, pois algum estudante lhe pichou o olho direito. Contudo, continuavam ali, os dois, lado a lado, como guardiões daquele primeiro templo educacional, que ainda hoje carrega a fama de ser o mais importante educandário do Estado, desde os tempos de Território Federal.
Nessa hora o tempo se confunde e a gente se povoa de lembranças: vê o corre-corre da hora do recreio, o riso, as bochechas vermelhas e o suor na ponta do nariz; fecha os olhos para não sentir o olhar austero da professora Cecília Pinto de Azevedo Costa repreendendo quem deixou de fazer o dever de casa e aplicando palmadas com a régua de acapu na mão do aluno “relapso”; relaxa ao ouvir a voz amiga da professora Graziela dos Reis quando algum de nós “foi chamado à Diretoria”, e se satisfaz quando lembra que entendeu facilmente a operação matemática e as regras gramaticais tão bem explicadas pela mestra Cacilda Barreto.
Depois palpitam outras memórias, resíduos embandeirados de uma época. Moleques saem em bandos pelas ruas, descendo a São José num tempo que não havia ônibus nem trânsito perigoso, espirrando lama um no outro na rua de piçarra, mexendo com o vigia da Escola Industrial, declamando versos de sacanagem para ele: “Deu meio-dia/ Panela no fogo/ Barriga vazia/ ... E saem em desabalada carreira para chegar rápido em casa e pegar o “boião”. Ora, o leite “peidão” da Aliança Para o Progresso que o Tio Sam mandava para o governo brasileiro não dava “nem pro chibé”, não tinha assim tanta “sustança”. Ah, sim, o uniforme sujo de lama, o ralho da mãe e a seriedade imperativa da hora sagrada do almoço...
Um dia depois de ter assistido a um filme de Tarzan, o Rei das Selvas, decidi ser como ele e pus-me a pular do muro ao galho da mangueira da frente da escola. Caí e fraturei o braço. De quebra ainda menti ao contar a versão de que caíra no pedestal da bandeira. Dei preocupação aos pais e professores, mas fui cuidado e enfaixado em gesso pelo eficiente enfermeiro japonês Harada, meu vizinho do Morro do Sapo, lá no bairro do Laguinho. Tempos depois levei uma surra do velho Antonio, meu pai, ao contar a verdade me vangloriando do feito infantil, mas estúpido.
Assisti muitas películas no cine Territorial que ficava contíguo à escola e não esqueço jamais o cheiro dos frutos da enorme mutambeira ao lado do prédio, pois foi sob sua sombra, quando fazia a quinta série e me preparava para a Admissão ao Ginásio, que o amor passou pela primeira vez na minha frente. Aqueles lábios arroxeados, o sorriso lindo e o andar rebolante da morena me fizeram sonhar uma eternidade num segundo. Por isso até hoje acho que o amor tem cheiro de óleo de mutamba.
Quando saí pelo portão, olhei para trás e lembrei que o único pé de pau-brasil que havia na cidade era o da frente do antigo Grupo Escolar. Era ali que história do Brasil se materializava para nós. Foi ali nesse lugar que me iluminaram de saberes e de certeza que os sonhos se realizam. Obrigado, velho Barão.
Fotos do acervo de Fernando Canto. A foto do prédio do Grupo Escolar Barão do Rio Branco é de 1965.
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