Publicado no jornal “A Gazeta” de domingo, 07.11.10
Para Emanuel e Camila, donos do “Boi de Ouro”.
“Abra a porta, acenda a fogueira/ Dona da casa, meu boi chegou/ Ele urra e estremece/ Que a boiada levantou”. Assim chegava o boi “Vem-te-ver” cantando o seu abre-alas nas portas das casas que o convidavam a exibir-se, sempre no início da noite nos bairros de Macapá antiga. E era tão grande o acontecimento que gerava grande expectativa na garotada, por serem tão pequenas as opções de lazer da época. No Laguinho, onde eu morava quando criança ficava apreciando aquele cortejo colorido dos trajes dos personagens, que vinham alegres cantando na rua, fazendo evoluções e apologias ao próprio boi, expressa nos cânticos fáceis e bem populares. À sua frente a figura clássica do dono do boi, o seu Gabriel, meio gordinho, baixo, de bigode a Clark Gable, com um grande chapéu e uma muxinga à mão. Ele encarnava também a figura do fazendeiro na representação do auto. A sátira, presente nas músicas e na atuação dos artistas, trazia um encanto indescritível.
O “boi-bumbá” é folguedo folclórico amazônico, réplica do “bumba-meu-boi” nordestino. Segundo Raimundo Morais (apud Vicente Salles), o “Boi-cordão Boi-bumbá é: certo número de homens e mulheres que, pelo tempo de São João, anda fazendo dançar o boi. Há o “boi-canário”, o “boi-laranja”, o “boi-estrela”. E, por ampliação, a “Ema”, o “Pavão”, a “Garça”. É um velho divertimento popular que parece oriundo da África”. Já Câmara Cascudo fala do “bumba-meu-boi” com nuances amazônicas. “O elenco do “boi-bumbá” inclui o senhor da fazenda, dona Maria, sua mulher, a moça branca, filha do casal, amo (feitor da fazenda), rapaz fiel (vaqueiro), dois vaqueiros, rapazes (vaqueiros auxiliares), Pai Francisco (preto velho, Mãe Catirina (sua mulher), Cazumbá, preto velho e seu companheiro, Mãe Guimá (mulher deste), “diretor” dos índios, que é o chefe da maloca, “doutor curador” e seu ajudante, um padre sacristão, um menino que serve de “rebolo” (segura os chifres do boi, rebolando-se enquanto Pai Francisco simula amolar uma faca para fazer o ”repartimento”), o “tripa” do boi (homem debaixo da armação, movimentando-a), maloca dos índios e roda de brincantes. Pai Francisco mata o boi para satisfazer ao “desejo” de Mãe Catirina e faz a divisão da carne e das vísceras. O fazendeiro manda prendê-lo pelos índios, previamente batizados por um falso sacerdote. O “doutor curador” ensina a Pai Francisco a técnica de espirrar em vários pontos do boi até despertá-lo (o sinal de cura é um peido). Bailados, desafios, saudações. O “boi-bumbá” outrora visitava as casas amigas e agora dança num local determinado para exibição, chamado “curral”: terreiro, barracão, tablado. Ajusta-se com outros folguedos como grupos figurando índios, bichos, pássaros, etc.”
Como a maioria dos folguedos juninos, antigamente a peça não era escrita, mas sim improvisada. O seu bom resultado ficava por conta da representação do artista popular, do seu talento, o que lhe dava grande responsabilidade de desempenho. Até hoje, nos lugares onde o folguedo subsiste, nem sempre as falas são obedecidas conforme os ensaios, o improviso pode ser a tônica do humor ou da dramaticidade que alguns quadros exigem.
Porém, antes de ser apenas um folguedo de divertimento popular o “boi-bumbá” também é, segundo V. Salles, um “brinquedo rural, da área pastoril que tem como principal motivação a luta de classes na sociedade colonial brasileira, de economia agrário-pastoril e regime escravista”. Leva-se em consideração aí, que desde 1850 já se tinha notícia escrita sobre o assunto, mas foi só depois que o tema foi abordado por vários escritores regionais, como Dalcídio Jurandir e na música por Gentil Puget e Waldemar Henrique
Por ser uma peça em que está presente a representação da morte, sua estrutura induz à reflexão religiosa ou totêmica diante de uma realidade social, pois o negro escravo tinha diante de si a busca da liberdade. Entretanto, por ser popular, era comum acontecerem as rivalidades entre esses cordões, posto que as prefeituras da região sempre promoviam concursos para a escolha do melhor boi, dando-lhes premiação que orgulhava o vencedor e estimulava o outro a vir melhor no ano seguinte. Por conta disso acirravam-se os ânimos nos encontros nas ruas e, assim, a pancadaria se generalizava e virava caso de polícia. Hoje esse antagonismo está mais para a espetacularização do folclore, que por sua vez virou atração turística, como no caso de Parintins, entre os bois “Garantido” e “Caprichoso”.
Infelizmente em Macapá esses cordões sumiram com a morte de seus promotores e por falta de incentivo. Vez por outra aparece um cordão que pouco se apresenta e não tem divulgação alguma pela imprensa. Talvez por ser satírico e caracterizado formal e literariamente como farsa, o folguedo já não pode competir com as peças de teatro e programas televisivos. Mas o “boi” ainda tem muito a ensinar. Em que pese os percalços e profundas mudanças do cenário social, os personagens continuam os mesmos, e continuam a satirizar e ridicularizar as ambições e as esquisitices dos poderosos de todas as farsas.
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