segunda-feira, 26 de abril de 2010

O ELOGIO DO PÉ

Publicado no jornal "A Gazeta" de domingo, 25/04/10 
           
Poema de Fernando Canto
Para Ubiratan do Espírito Santo, o Bira, craque maior do futebol amapaense

                        I
Ainda que a mão guie
O rápido correr do atleta
O pé equilibra a perseguição da pelota e seu couro
Tal como o ouro em seu brilho
Desperta e arrisca o assombro à cobiça
No fado de explodir a bola
Num voo atômico em direção à rede.
                       
                        II
O atleta – certeiro - atinge o alvo duas vezes
Pé e cabeça se harmonizam nesse objetivo
E mais vezes, mais os olhos se guiam à rede – incansável,
Mistura de inseto, soldado, animal de testa larga
Arranca cem vezes o grito da torcida enlouquecida.

                        III
É azul, preto e branco, vermelho
O gosto da loucura ecoante
De rugidos da selva, de cantares da alvorada
E de sangue guerreiro de norte a sul do Brasil:
É Bira de Nueva Andaluzia, paraoara,
Dos pampas, das alterosas,
Do espiritu sancto do gol, das vitórias domingueiras
Das tardes ensolaradas, crepúsculos festivos
Da tela não-pintada de Michelangelo
(Alegoria de Deus que entrega a bola a Adão
No leve tocar de dedos)
Como um contrato entre as partes no Éden tupiniquim.

                        IV
É Bira, príncipe da arte de chutar no gol
Viajante contumaz do oco da bola                                                                    
Onde moram os querubins do futebol

                        V
No contato da chuteira e a bola
Centelhas rompem imperceptíveis aos olhos da torcida
Mas ali, na trajetória da pelota ensandecida
Girando em curva ou reta
Corre o chute mágico do atleta uBIRAtan
Que trave alguma, vento algum, goleiro algum,
É capaz de parar ante o fundo da rede, o seu destino.

                        VI
É certo que o tempo, implacável como o goleador
Também abre ruas no rosto em movimento
Ventos empoeirados surgem abruptos dos logradouros
Como quem logra a vida em ciclos imemoriais.

                        VII
Onde se vê de novo o voo rasante dos quero-queros
Sobre verde do gramado?
Talvez no espelho da lembrança
Porque a fama, efêmera e fugaz
Faz da vida o templo da memória, onde se clama
O que ficou para trás
Onde os cantares se repetem em rituais
Para abençoar a glória dos que vencem
Em tempos que escrevemos nosso esquecimento.

                        VIII
A voz grossa dos que torcem e glorificam
Deixam grandes silêncios na alma
Cobram-se cobranças, cobram-se castigos
A falta, a mão, o pênalti
E o gol, que para sempre é objetivo
Resta, então, a festa da massa em labaredas
Em gritos, confetes e bandeiras
(ou o desterro infausto em outros horizontes)                                                                         
                        IX
Entretanto o pé-de-ouro arrisca
Em balés de pés-de-lã/ pés-de-moleque
Pés-de-pato sob as gotas de um pé-d’água na neblina
Nas estações mais aziagas das paisagens-penitências
E realiza seu trabalho de cerzir o tempo e as camisas coloridas

                        X
Ora, a inveja é um olhar sinistro
Que se movimenta sobre a dádiva
Ofertada aos talentosos
É um ovo só
Saído das entranhas da serpente,
Para reduzir a alma que alimenta com seu ranço

                        XI
Ora, o futebol não se limita a homens
Em seus campos de lama e de gramas aparadas
Há um árbitro, há rivais que se trajam de esperança
Oponentes opulentos em nervos eriçados
Quando a bola cintilante gruda ao pé do craque
E ele mergulha nas funduras do seu rio
Onde cardumes geram suas eternidades
E esperam uma coreografia não ensaiada
Para, enfim, soltar a voz contida em milênios de partida

                        XII
Ah, a pira dos deuses parece penetrar em águas abissais
De onde irrompe o grito final do campeão

                        XIII
Quem não viu não mais verá. Nem ouvirá
O clamor dos ribeirinhos do Amazonas, o eco da baía de Guajará
O som ferrífero da serra do Curral e o brado dos gaúchos do Guaíba.
Quem não viu não sentirá
A poesia refletida na potência do olhar, da mira
Da luz mágica do Bira e seu bólido de vidro e luz
Transformando-se em espelho pela última vez.

                        XIV
E nós aqui tal degredados em nossa própria aldeia
Apenas com as imagens do passado e nosso orgulho
Fomos os pés, os pés do Bira
Quando o chute governava a bola
E a noite vigorava um brinde
A mais um campeonato ganho na história
Pelos pés do nosso ídolo
De sonho e de memória.

Macapá, 21 de abril de 2010

4 comentários:

  1. Paidégua Barba! O Bira merece. Além disso, é um cara muito legal. Já tive o prazer de tomar umas cervas com ele. Parabéns pelo poema, você é fora de série.

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  2. Valeu Fernando, o Bira merece. abraço Calixto.

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  3. FERNANDO EU QUIS COMENTAR QUANDO LI DA VEZ PRIMEIRA ESTE "FORTE" POEMA, UM DOS "BONS" DA LINGUA PORTUGUESA SOBRE "COISAS DO FUTEBOL" ASSUNTO BANAL DO DIA A DIA. MAS QUE É DIFICILIMO DE SE CRIAR EM CIMA DELE OU SOBRE ELE E SEUS PERSONAGENS.MAS NÃO CONSEGUI POSTAR.
    AGORA O FAÇO.
    O POEMA FICOU BEM ESTRUTURADO RITMICO RICO EM SUA FIGURAÇÃO E BELISSIMAMENTE "ALINHAVADO"
    UM TOQUE DE CRAQUE.
    EM TEMPO:- DEIXA EU COLOCAR O TICOTICO O PALITO E JOCA NO LADO DESTES TIME DE (EX)CRAQUES AMAPAENSES ???
    ABRAÇOS LUIZ JORGE.

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  4. Entre eles tb estão o Alceu, O Bolinha, o Jonas, o Marco Antonio, o Antonio Trevisan, o Aldo,O goleiro Zé Roberto, o Saracura, o Bil... Muita gente boa que marcaram o futebol amapaense. De resto, agradeço as considerações sobre o poema. Aguarda o carteiro. Abs. Fernando Canto.

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