Nos meus tempos de escola, a canoa a vela era o único transporte utilizado para ir às aulas e de retorno à Fazenda, em período de férias.
Belém era o centro procurado por todos, porquanto Macapá, àquela altura, era cidade de rota contrária aos interesses dos que morejavam às margens do Rio Araguari.
O barco Aporema e as canoas Macaibense, Safira, Deslizante, Social e Excelsa, todas à vela, eram as embarcações que transportavam cargas e passageiros. Por elas o Araguari mandava à capital paraense, além do gado bovino para o corte, os produtos nativos, recebendo em contrapartida, artigos do comércio de varejo.
As embarcações saiam da foz do Araguari, geralmente ao romper da aurora, e dependendo da intensidade do vento, entre as nove ou dez horas, já perdia de vista a mata.
Assim, sob um céu que se debruçava sobre o mar e parecia mergulhar suas faldas nas águas, além horizonte, viajavam o resto do dia a noite toda, e na manhã seguinte, no começo da tarde, o tripulante, do topo do mastro, já indicava, com entonação de alegria, que tinha mato à vista. Era o Cabo do Maguari, na Ilha do Marajó, a cada minuto encurtando mais a distância que o separava da embarcação.
Sua ultrapassagem era cronometrada pela voz cantante e cadenciada do proeiro recostado às enxárcias, um pé sobre o convés e o outro firmado no alcatrate, que manejando com extrema habilidade a corda da sonda, gritava incessantemente, a ser ouvido pelo piloto: "uma braça escassa! uma braça! uma braça e dois palmos! braça e meia!..." e sua voz continuava até a sonda indicar profundidade suficiente, dando a certeza da embarcação haver atingido o canal. Estava montado o Cabo, e a canoa velejava vento à popa, fugindo sobre o mar.
Ao longe, o sol poente multicoloria o céu crepuscular com seus raios estilhaçando as nuvens. No mar, sobre as águas revoltas, dezenas de vigilengas e tapaiuaras, no seu caminhar de cisne, demandando da pesca da gurijuba e da piramutaba, bordejavam céleres, para montar o Cabo antes que a noite chegasse.
Essas canoas, vigilengas ou tapaiuaras, freteiras ou não freteiras, eram caprichosamente pintadas a cores vivas e brilhantes, decoradas com figuras pitorescas e enfeitadas com bandeiras que tremulavam como acenos de adeus, ao sopro da menor brisa; eram bem equipadas e a tripulação primava pela sua limpeza e se orgulhava de sua canoa. Em cada uma delas, vinha o triunfo de uma boa pesca ou bem sucedida porfia.
Pompílio Jucá, autor de "As Ilhas" e também de muitas poesias, costumava cantar em versos as proezas dessas embarcações e a valentia de sua tripulação, que sem bússolas, tendo apenas a intuição a nortear, afoitava-se mar afora, com suas canoas leves e pequenas como cascas de noz.
Exaltando a sua "Favorita", escreveu o poeta Pompílio:
Bela canoa pintada,
Feita por mestre Cutuba,
Anda longe da beirada
Na pesca da gurijuba.
Nunca achou, a Favorita,
Outra que leve vantagem,
Vai sempre fazendo fita
Até o fim da viagem.
Tendo o Zé Grande no leme
E o Coati como proeiro,
A Favorita não teme
Força de vento ponteiro.
Da ponta do Maguari
Levanta com vento forte,
Fundeia no Cunani
Sem ver o Cabo do Norte.
Ai que saudades que eu tenho...
Mesmo em Macapá, quantas e quantas vezes, em tardes alegres de verão, a gente ficava no terraço do antigo Macapá Hotel unicamente, para se deleitar, apreciando a porfia ou o viajar despretensioso das inúmeras canoas de velas tingidas com tintura extraída do paricá, que aportavam ou deixavam a extinta Doca da Fortaleza.
Hoje toda essa beleza de vai e vem de embarcações a vela, bordejando e sulcando altaneiras as águas do rio gigante e seus afluentes, já não existe mais. O motor a óleo diesel foi aos poucos profanando e desvirginando todo esse deslumbramento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por emitir sua opinião.