terça-feira, 19 de julho de 2011

O ESCRITOR À SOMBRA DO MÚSICO *


J. Artur Bogéa**
Palestra proferida na Semana de Letras da
Universidade da Amazônia (1994)

“Fiz da vida uma canção”
Waldemar Henrique


Dois nomes despontam na Literatura Paraense atual dentro do Gênero Fantástico: FERNANDO CANTO que venceu o I Concurso de Contos das Universidades do Norte, 1992, com a narrativa O BÁLSAMO e FÁBIO CASTRO que, anteriormente, publica o livro de estórias curtas O PAÍS DOS CABEÇUDOS. Esta nova escritura teve, entretanto, um precursor, quase desconhecido como tal, embora tenha renome internacional como compositor. Falo do maestro WALDEMAR HENRIQUE, ou simplesmente, para os amigos e admiradores, O MAESTRO.
 Aqui se impõem algumas definições do Gênero:
“o fantástico se fundamenta essencialmente numa hesitação do leitor – um leitor que se identifica com o personagem principal – quanto à natureza de um acontecimento estranho”.

Todorov – teórico búlgaro, precursor
dos estudos sobre o assunto.

Durand, o autor de AS ESTRUTURAS ANTROPOLÓGICAS DO IMAGINÁRIO;
diz:

“... a função do fantástico não é senão reserva infinita de eternidade contra o tempo”
Para Shaw o fantástico é um
“adjetivo que qualifica um tipo de imaginação extravagante e sem peias ou a formação de imagens mentais extraordinárias ou absurdas”.

O russo Saloviov quer que
“No verdadeiro fantástico guarde-se sempre a possibilidade interior e formal de uma explicação simples dos fenômenos, mas ao mesmo tempo essa explicação é completamente privada da possibilidade interna”

Essa abordagem de Saloviov, baseada na divisão “externo”, “interno” remete de volta a Todorov, que quer uma compreensão do Fantástico ”do ponto de vista objetivo, científico e problemático”- segundo Castro (1986:43); para Lovecraft esta compreensão deve ser “impressionista, do emocional e do absoluto”(id:id).
Apresentadas estas definições, resta a questão de datas. Bessiére aponta o aparecimento do Fantástico a partir do século XVIII. Entretanto há autores, como Rabkin, que recuam até a escritura de GÊNESIS; outros se aproximam do clássico dos clássicos da Literatura Árabe, AS MIL E UMA NOITES.
Borges, o autor de ELEPH – primeira letra do alfabeto hebráico – afirma que “las literaturas empiezám por lo fantástico” e lembra que “los sueños vienem de una forma muy antiga del arte”(1986:46-6). O escritor argentino situa o aparecimento do Fantástico “en nuestra america y para lengua española”, em 1905, com a publicação de LAS FUERZAS ESTRAÑAS, de Lugones e assinala que “digamos que Byoi Casares, Silvia Ocampo y yo iniciamos este tipo de literatura; y que eso cundió y dió escritores tan ilustres como Garcia Marques e como Cortázar”(id:44).
Em HISTÓRIA DA LITERATURA HISPANO AMERICANA, Bella Josef se refere a Ocampo apenas de passagem, como “renovadora em muitos aspectos”; quanto a Byoi Casares, apenas cita como o autor de A INVENÇÃO DE MOREL como fonte de “nouveau roman” francês, que, aliás, se distancia do Fantástico.
Entretanto é preciso voltar ao Maestro. A imensa geografia de parcerias se estende além mar e através do tempo. Musicou Camões, nisto também foi precursor do grupo de rock Legião Urbana que recentemente reaproveitou o soneto AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER, numa composição tipicamente pós-moderna, em que cita, ainda, passagem da II Epístola de São Paulo aos Coríntios e versos do épico indiano UPANISHAD. Ainda entre os portugueses, Waldemar Henrique emprestou sustenidos e bemóis às rimas de Antonio Nobre e Carlos Queiroz, José Régio e Alberto Rebello de Almeida.
Sob o signo do Cruzeiro do Sul, temos Bruno de Menezes - autor dos mais belos versos da Literatura Paraense: "E vão por esse mundão que se chama saudade / e começa e termina numa esquina de rua" (CHORINHO) Além do autor de BATUQUE, pode-se citar Waldmir Emmanuel, Antonio Tavernard, Oswaldo Orico - mais conhecido pelo seu livro de culinária regional, Augusto Meira Filho, Jacques Flores, Jorge Hurley, Ilná Pontes de Carvalho, Gastão Vieira e uma controvertida parceria, pelo próprio compositor em rara confidência, com De Campos Ribeiro; do Rio Grande do Sul: Raul Bopp que não resistiu ao feitiço de COBRA NORATO, Augusto Meyer e Vargas Netto; no Amazonas: Álvaro Maia, Violeta Branca - que parece pseudônimo, mas não é, numa terra de mestiços, e Benjamim Lima; no nordeste, Manuel Bandeira, Ascenso Ferreira e Fernando Lobo, de Pernambuco, e ninguém pode esquecer a transposição para do NÊGA FULÔ, do alagoano Jorge de Lima que inaugurou a poesia negra da literatura Brasileira.
A citação de outros colaboradores formaria uma lista muito extensa. Mas de todos eles, Waldemar Henrique foi seu próprio e melhor parceiro, daí o título desta literatura, O ESCRITOR À SOMBRA DO MÚSICO. Basta lembrar BOI BUMBÁ que Mário de Andrade considerava a mais bela peça do Cancioneiro Brasileiro.

Ele não sabe que seu dia é hoje.
O céu forrado de veludo azul-marinho
Veio ver devagarinho
Onde o boi ia dançar...
Ele pediu prá não fazer muito ruído
Que o Santinho distraído
Foi dormir sem se lembrar

E vem de longe o eco surdo do bumbá sambando
A noite inteira, encurralado, batucando...

Bumba meu "Pai do Campo" ô-ô
Bumba, meu Boi-Bumbá

Bumba, meu Boi-Bumbá...
Bumba, meu Boi-Bumbá...

Ele não sabe que seu dia é hoje
Estrela d'alva lá no céu já vem surgindo...
Acordou quem 'sta dormindo
Por ouvir galo cantar...
Na minha rua resta a cinza da fogueira
Que levou a noite inteira
Fagulhando para o ar...

E vem de longe o eco surdo do bumbá sambando
A noite inteira, encurralado, batucando...

Bumba meu "Pai do Campo" ô-ô
Bumba, meu Boi-Bumbá
Bumba, meu Boi-Bumbá...
Bumba, meu Boi-Bumbá...

Antes que o Pará descobrisse a própria cultura popular, Waldemar Henrique já compunha 1932, o CARIMBÓ. O Pará custa a descobrir seus próprios valores. Esquece que Belém foi, depois de São Paulo, o primeiro Estado, antes do Rio de Janeiro, a adotar a bandeira do modernismo. Mais remotamente poderíamos mostrar a Modernidade das Letras Paraenses, a partir da primeira metade do Século XIX. Se é preciso uma data que seja a ano de 1848, quando Felipe Patroni publica o poema O CÍRIO DE NAZARÉ, depois de mais de vinte anos de fundar O PARAENSE, primeiro jornal da Amazônia, 1822. Se as ideias de Patroni prepararam a seara para a Cabanagem, a Modernidade Política fica com Batista Campos, o cérebro da "única revolução popular, no Brasil, que chegou ao poder pelas armas" - no dizer de um historiador local. A modernidade científica fica com Júlio César Ribeiro de Souza, poeta e inventor de balões dirigíveis. Patroni, Batista Campos e Júlio César foram contemporâneos e com um berço comum, a Vila de São José do Acará.
Mas eis a letra de CARIMBÓ, em que as aliterações de P/B já traduzem a sonoridade do ritmo e da dança.

A noite vai alta...
No céu todo estrelado
Uma voz soluçante
enleia a solidão.
Deixo a cidade,
me aproximo do sertão
e vejo numa clareira
um bando de negros
em roda de uma fogueira
dançando batuques de banzo
assim:
“Bate bumbo de urucungo”
“Olha urucungo bate bumb’êh”
“Sinhá de Loanda
tem fé no cantar
me leva pra Umbanda
nas ondas do mar”
“Tem pena, tem pena, tem pena de mim, Sinhá
de Loanda, oi!
Me pega, me solta, me torna a pegá, Sinhá
de Loanda,oi!
Me deixa dançar – Sinhá de Loanda, oi!”

A dolente e lírica TAMBA-TAJÁ dispensa comentários: é um conto pra mil vozes em coral ou um lamento de amor em solo, mas a consagração está em algum assobio errante que se ouve numa esquina. TAMBA-TAJÁ, relançada por Fafá de Belém, tem um depoimento do próprio compositor que transcrevi no ABC de WALDEMAR HENRIQUE: “Brotou em tempo de amor humilde e profundo. Já está fazendo quarenta anos” O ABC foi publicado originalmente no Jornal A Gazeta, de Vitória em 1977, quando tentava divulgar as coisas do Pará no Espírito Santo. Depois da publicação foi pirateada em livro por um compilador local.
Sobre música, não me atrevo a invadir a praia de Lenora Brito que já tem um livro dedicado às composições de Waldemar Henrique. Falo dos versos que ficaram sem melodia e em que, por um instante, o músico fica à sombra do escritor, como, por exemplo, BALADA DAS CINCO CRUZES.

Há no meu coração
cinco cruzes
de amores imortais
que se soltaram
da minha vida
deixando apenas
um vácuo estrelado
imenso de solidão.
Procuro cravar-me na noite
para esquecer tua voz:
é tua a primeira cruz.
foi tua a primeira noite.
O mundo ficou pequeno
quando cobriste meus olhos,
abafaste minha boca,
tolheste meu gesto
de pedir perdão...
O mundo ficou inútil
porque sobre nós
unicamente estrelas fremiam
na noite silenciosa.
A relva fez-se tão débil
que a terra, atônita,
deixou de resistir.
Tudo entregou-se a nós
pela divina compreensão
de amor imortal
que se desencadeava
perante a natureza
como uma tempestade
que esperou séculos
para explodir...
nenhuma flor
ficou de pé
quando rasgaste minha alma
e partiste
na desconfiança milenar
do momento perfeito
há no meu coração cinco cruzes
de amores imortais.
A segunda cruz foi de todas
a mais cara;
viram-me passar caindo de tristeza
e disseram: - coitado!
E riram para me humilhar...
A segunda cruz é de todas a mais cara:
foi a que me ensinou a rezar
por alma do amor imortal.
foi a que me deixou nódoas
de sangue nas mãos
e um funesto desejo
de continuar.
Foi de todas
A única.
A terceira cruz veio do mar.
Trouxe o encanto da distância
que as águas encheram
e repartiram.
não fez sofrer
nem fez sorrir.
O mar é assim
repete nas ondas a mesma canção.
Não cabem na terra as noites do mar.
Amores da terra
não sabem nadar.
A terceira é:
a cruz do mar.
O silêncio por longo tempo
cobriu de negro meu desejo.
A vida tornou-se escura
como uma alma em crime.
Nasceu em mim um anseio
de ser bom
de valer.
Fez-se a madrugada:
um galo cantou
um sino plangeu
um botão cheio de orvalho
refloriu.

As nuvens no céu
arrastaram véus
de gaze azul e roxa
para mostrar aos meus olhos
deslumbrados mais uma vez
a Estrela da Manhã.
Prostei-me em adoração
e senti que não sabia amar.
Comecei a prece do êxtase infinito.
Fui buscar todos os pedaços
da minha alma
atrás de muitos séculos
e ainda senti que não sabia amar.
Então prostei-me em adoração
e ergui nova cruz
- a quarta cruz -
a Estrela da Manhã.

Meu coração tem cinco cruzes
de amores imortais.

A última está na montanha da presença
isolada
perdida
maior que todas as distâncias do céu e da terra
maior que a própria vida,
pois é a cruz do amor impossível.
(Rio de Janeiro, 1936)
Há ainda que citar o Waldemar Henrique voltado para o Imaginário da Região. Imaginário, esta palavra da moda, mas de difícil definição por seus usuários. Neste âmbito produziu a belíssima página “Fascínio do Boto no Folclore Amazônico”:
“Em minha meninice o boto frequentemente aparecia nas conversas (...) Embora seja uma espécie de heroi sem nenhum caráter como Macunaíma, de Mário de Andrade, nenhum outro personagem de nossa mitologia se oferece tão fabuloso de assunto – aventura e desventuras, façanhas e sortilégios (...) Aliás, já lhe dediquei 3 canções e espero escrever-lhe um ballet”.
A referência a MACUNAÍMA, aqui, vai acompanhada do pedido para que o maestro divulgue as cartas que recebeu como o ARAPIRANGA OU O INCÊNDIO A BORDO, em que descreve, com vivacidade, o pânico no navio e a solicitude de Arapiraca em servir-lhe um cafezinho em meio ao pandemônio. Com nostalgia, conclui: “Nunca mais vi o Arapiraca...”
As diversas faces do músico / poeta /prosador se completam com a do teatrólogo. Duas peças constam no curriculum de Waldemar Henrique: OS REVOLTOSOS, 1924, e PRELÚDIO, 1938 – nesta os personagens dialogam com duas composições de Chopin.
Mas quero voltar ao Waldemar Henrique como precursor do Fantástico na Amazônia, com o conto – uma pequena obra-prima no gênero – FOI ASSIM:

Um dia a índia velha resolveu contar às cunhãtans da tribo como ficara cega.
- Foi assim: Os brancos vieram com bocas de fogo e destruíram nossa maloca e nossos irmãos. Muitos brancos morreram também. Um eu matei porque ele não atirou em mim, ficou rindo de ver aquela cunhãtam-mirim de arco na mão em meio de duro combate. Eu fui bem perto dele e feri-o entre os olhos que estavam rindo. Então ele caiu morto aos meus pés e o olhar dele, não sei como, entrou no meu. Andei muito tempo pelas selvas com aquele olhar parado na minha frente. Mesmo quando eu fechava os meus olhos, os dele ficavam por dentro me olhando bem de perto...
Uma vez eu quis acabar com aquilo e arranquei os olhos do branco de cima dos meus olhos. Depois de uma dor horrível e longa notei que arrancara os meus próprios olhos e ficara cega.
Sozinha dentro da noite, dentro da minha escuridão, ainda vejo – lá estão, parecem duas estrelas pequeninas – os olhos risonhos do branco olhando para mim.
Foi assim...
FOI ASSIM pode ser classificado como uma alegoria do Amor e do Ódio. Alegoria, no sentido que empresta Morier: “relato de caráter simbólico”.
Há um Narrador que comenta: “Um dia...” para introduzir a dramatis personae: “a índia velha” – relembro a definição feita no início desta leitura sobre “eternidade” / “tempo”. Narrador e Personagem se encontram no tom oral que perpassa a estória: “Um dia” / “Foi assim”, toma a palavra a “índia velha”. Esta mesma frase, “Foi assim”, se repete na conclusão do relato seguida de reticências. Esta repetição emoldura “aquela cunhãtan-mirim de arco na mão em meio a duro combate”. Chevalier & Gheerbrant fixam que “o arco é, enfim, símbolo do destino” (v1:p.114). Símbolo do destino que se traduz na repetição da frase “Foi assim” e em que as reticências estão no lugar da flecha, “presentia in abscentia”, que é substituída pelo verbo ferir = “feri-o entre os olhos que olhavam rindo”. No substantivo “olhos” a letra O se repete como no desfecho frontal de um rosto; já no verbo “olha(a)vam” há apenas um O que é o desenho da ferida entre os olhos.
O arco é também símbolo da força como se lê no Livro de Jó: “e na minha mão meu arco representa força”, como na mão da “cunhãtan-mirim”. E é mais contundente como arma pela junção “cunhãtan” / “menina” + “mirim” / “pequena”, para caracterizar que, à época do “duro combate” era ainda bem menor que as cunhãtans que, agora, ouvem a estória – as Narratárias, no conceito de Genette.
É difícil manter a sequência dos símbolos, mas vou voltar ao narrador: “Um dia, a índia velha resolveu contar às cunhãtans da tribo como ficara cega”: Biedermann atribui a “cegueira à sorte” dentro do conceito da cultura grega. “Depois de uma dor horrível e longa notei que arrancara os meus próprios olhos e ficara cega” – versão feminina do mito de Édipo, sob esse único aspecto, mas há também ressonância da cegueira entre os adivinhos, como Tirésias, e os poetas, como Homero. Os gregos acreditavam que os cegos, portanto adivinhos e poetas, “viam os segredos revelado aos deuses” (1993:83) e convém lembrar que a Fortuna, deusa da sorte, como a Justiça, têm os olhos vendados. O gesto da “índia velha” traduz o “desprezo do mundo exterior face à luz interior” (id : id). O olho, ainda Biedermann, é o “principal órgão do sentido (...) sempre ligado a luz e a capacidade espiritual de ver (...) não apenas receptor, mas também emissor de raios de força e símbolo da capacidade de expressão espiritual” (id:266) = “emissor/receptor” = os olhos do “branco” e os  olhos da “cunhãtan-mirim”.
Os olhos e a boca são, “psicanaliticamente, símbolos da genitália feminina” – Biedermann (id : id). Na escritura de Waldemar Henrique a palavra boca surge ligada a fogo: “os branco vieram com suas bocas de fogo e destruíram nossa maloca e nossos irmãos”. Boca + Fogo, como no apocalipse Boca + Espada “para ferir com ela as nações” (19:15). Aqui têm-se a ambivalência do símbolo da boca, como do fogo, como poder criador e de destruição.
“O fogo e ambivalente porque elemento que parece ter vida, porque consome, aquece e ilumina, mas também pode causar a morte e a dor – Biedermann (id: 162). Se o fogo marca a primeira face da civilização do ser humano, se transformou em elemento destruidor, já nos primeiros tempos de guerra e na conquista do novo-mundo, passando pelas fogueiras da Inquisição”
A destruição de “nossa maloca e nossos irmãos” remetem a moradia e à irmandade na terra. Qualquer livro de história define as malocas indígenas dentro do espaço do circulo, símbolo das civilizações nômades, por oposição ao espaço quadrado das cidades, território de povos assentados.
A morte dos “nossos irmãos” é que impele a “cunhãtan-mirim” à luta onde descobre através do olhar um mesmo impulso de amor e ódio. Segundo Chevalier & Gheerbrant “o tiro de arco é ao mesmo tempo função real, função de caçador e exercício espiritual” (1974:v.1:p.144)
Amor e Ódio se transformam em “duas estrelas pequeninas = “os olhos risonhos do branco olhando pra mim”. Os olhos – e a boca remetem à TAMBA-TAJÁ “Que ninguém mais possa beijar o que eu beijei / nem possa olhar dentro dos olhos que eu olhei”. A lenda dos índios macuxi, que aliás Waldemar Henrique conheceu quando já morava no Rio de Janeiro, repete o olhar da paixão como em FOI ASSIM – bem próximo da relação que o idioma grego faz entre o verbo “ver” e o ato do “conhecimento”.
Me permitam uma digressão: TAMBA-TAJÁ e outras composições de Waldemar Henrique poderiam ser encadeadas como um SHIR HA SHIM (Cântico dos Cânticos) AMAZÔNICO, a nomeação das partes do corpo, tanto da mulher quanto do homem, são enumeradas, também, enumeradas no poema de Salomão. Agora que a imprensa do sul e a critica enaltece a tradução de Haroldo de Campos do SHIR HA SHIM, é preciso lembrar que a primeira versão deste livro bíblico, direto do hebraico para o português foi feita por um poeta judeu que morou em Bragança (PA) chamado José Benedito (Ysef Baruch) Cohen, circa 1920, conforme atesta Eustáquio de Azevedo em LITERATURA PARAENSE.
“Sozinha dentro da noite, dentro da escuridão, ainda vejo – lá estão parece duas estrelas pequeninas – “os olhos risonho do branco olhando para mim”. “noite” / “escuridão” batem com o conceito de Biedermann de que nem sempre a noite é concedida como a ausência do sol, mas também (...) com a escuridão cheia de segredos e com o seio da mãe protetora – a floresta (1993:260). A noite, Nyx, para os gregos, traja veste preta entremeada de estrelas, é a “mãe do sono, sonhos e dos prazeres do amor. Mas, também de Tânatos, a Morte”(id:id). A família de Nyx reúne Moros – a Ruína, e Nemesis – a vingança. A representação da noite salpicada de estrelas aparece num dos contos de ZEUS OU A MENINA E OS ÓCULOS, da escritora paraense MARIA LUCIA MEDEIROS que não foi citada antes de FERNANDO CANTO e FABIO CASTRO porque não excursiona apenas pelo fantástico. Mas, talvez pelo determinismo dos símbolos, a escritora Maria Lucia Medeiros segue as iniciais de seus nomes: Música, Luz e Mistério.
Mas, que estrelas são estas que continuam a perseguir a “índia velha” na “escuridão”? “Em muitas mitologias as estrelas são consideradas os mortos que subiram ao céu” – Biedermann (1993:146). Outras interpretações indicam “a luz que vem do alto, nem sempre reconhecível” (id:id) como não reconhecível para  a “cunhãtan-mirim” a mistura de amor e ódio que só se revela quando decide contar sua estória, já então “índia velha”.
São duas estrelas: os olhos do “branco” que “olhavam rindo” e o numero dois é símbolo de oposição, tanto pode revelar o equilíbrio realizado como ameaças latentes, reciprocidade antagonista ou atrativa – Chevalier & Gheerbrant (1974:190).
Com o passaporte que a semiótica cultural me fornece para transitar em outras terras dos Arcanos Maiores do Tarô e que corresponde à letra Beth do alfabeto hebraico e, o formato da letra não pode ser dissociado do simbolismo que corresponde à boca, portanto as “bocas de fogo” que matam, e à boca da “velha índia” que narra, conta porque sabe, e o “nome erudito da segunda lâmina é Gnosis”. Os ocultistas chamam-na,
às vezes, A porta do Santuário = “Maloca”. O nome comum é A Papisa ou a Sacerdotisa, mais um desdobramento da estória.
A frase “ele caiu morto aos meus pés” está inscrita na metade do segundo parágrafo e divide a narrativa entre a ação – “duro combate” e a reflexão – “Andei muito tempo pelas selvas com aquele olhar parado na minha frente”. Para muitos povos da selva é “o verdadeiro santuário natural” (1974: v.2: p.340), o que completa a leitura da segunda carta do Tarô. Agora a “selva” associada a “escuridão” remete ao inicio da Divina Comédia, a “selva escura” por onde Dante inicia a peregrinação pelo inferno.
Caillois, citado por Molino, apresenta seis rubricas para a categoria do fantástico:
1.                  O diabo e as feiticeiras
2.                  A morte, os fantasmas, os duplos e os vampiros
3.                  A mulher e o amor
4.                  A animação do inanimado
5.                  O mundo do sonho e o mundo real
6.                  Modificação do espaço e do tempo
A narrativa de Waldemar Henrique se fixa apenas na terceira categoria? Quem reler verá que a errância da “índia velha” pelas “selvas” passa por todos estes estágios e que todas as respostas se completam no espaço onírico que Waldemar Henrique, este escritor à sombra do Músico “compôs” para os leitores.


*Extraído da revista Asas da Palavra, do Curso de Letras da Universidade da Amazônia – UNAMA, Nº 01, Belém, 15 de fevereiro de 1995. Pág. 29-37.
**Professor de Literatura da Amazônia do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da Universidade Federal do Pará e professor visitante da Rijksuniversiteit te Utrecht (Holanda)

OBRAS CONSULTADAS
BACHELARD, Gaston – L’ Instituition de l’Instant. Paris, Gontier, 1978.
BESSIÈRE, Irene – Le Récit Fantastique (la poetique de l’lncertain). Paris, Larrouse,1974.
BORGES, Jorge Luís y FERRARI, Osvaldo – Libro de Diálogos. Buenos Aires, Sudamérica,1968.
BRANDÃO, Junito de Souza – Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega. Petrópolis, Vozes,1991.
RABKIN, Eric – Fantástic World. Oxford, University Press, 1979.
SILVA, Anazildo Vasconcelos da. – A Lógica da Ambiguidade Fantástica. In Revista de Letras, Rio, Suam, Ano 2, nº 2,1975. P.43/s.
TODOROV; Tzvetan – Introdução à Literatura Fantástica, São Paulo, Perspectiva, 1975.
*As traduções são do Autor e mantêm as indicações originais.

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