segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A MORTE DO PIRULITEIRO

poço 01_ Perto de casa havia uma família de pessoas muito pobrezinhas. Três molequinhos saiam todas as tardes para vender pirulitos que a mãe deles, uma jovem viúva, fazia com capricho. Retornavam ao entardecer com luz suficiente para baterem uma bola na rua, pois nela nunca passava carro a essa hora.

Deviam ter oito, sete e seis anos quando os conheci. Eram branquinhos e tinham os cabelos louros e espetados, cortados do jeito militar. Pareciam ter vindo de bem distante, talvez do Maranhão ou do Ceará. Todos estudavam na mesma escola que eu, um grupo escolar público no centro da cidade, para onde íamos, nas manhãs, bem cedinho, descendo a ladeira com nossos macacões cáquis, o uniforme escolar que o governo do então Território Federal fornecia a todos, indiscriminadamente. Voltávamos às onze horas, quando a sirene da Olaria Territorial apitava exatamente na mesma hora que a campa da escola batia. Eu ficava admirado com aquilo. E vinha com eles, ávido para chegar em casa e almoçar, enquanto que eles não sabiam se iam comer alguma coisa, apesar de terem merendado. Só tinham a certeza de uma jornada de trabalho à tarde, quando iriam se dividir para vender os pirulitos lá pelas bandas da Doca da Fortaleza, na beira do rio. Depois jogariam uma pelada na rua e dormiriam cedo, pois nessa época não havia luz elétrica no bairro e nem se sonhava com televisão.

Um dia o mais novo deles desapareceu. Era inverno, a chuva fustigava a cidade alagando os terrenos baixos. O menino não chegara em casa e o alarme foi dado. Procuraram a noite inteira sem êxito. Seu corpo foi achado no dia seguinte, engatado no bueiro do meio da ladeira da nossa rua, uma tubulação que ligava um grande lago natural do bairro onde morávamos ao rio Amazonas. O vendedor de plantas notara uma camisa verde no acostamento da rua e adiante um tabuleiro de pirulitos vazio. Era véspera de Natal e foi grande a consternação das pessoas ao saberem do fato. A criança deve ter parado para tomar banho no pequeno igarapé, mas não conhecia a força da correnteza quando a maré baixava no tempo das chuvas, e se afogou.

Todos os moradores se entristeceram, pois o menino lourinho era muito estimado. – Um pequeno trabalhador que ajudava sua família. Coitadinho, diziam. Lembro que quase todo mundo foi ao enterro a pé. Na Missa do Galo o padre rezou por ele de novo e muita gente chorou de emoção, pois o comparou ao Menino Jesus, que ajudava o pai no ofício de carpinteiro.

Foi um Natal muito triste para mim. Achava um absurdo a morte daquele menino esperto que já lidava com dinheiro na sua pré-profissão de vendedor/piruliteiro, apesar de nem sonhar grandes sonhos ainda, pois não tinha estímulos em casa.

Ao visitar a casa de meus pais, onde moram meus irmãos, ontem, passei pelo bueiro no meio da ladeira. Parei o carro adiante e fui olhar o igarapé correndo no mesmo sentido, do lago para o rio. Alguns matupiris e carás-barbelos dançavam na água clara que margeia o fluxo das águas em velocidade, corrente que passa atravessando o terreno do seu Gama, até pegar o Igarapé das Mulheres e chegar finalmente ao Amazonas. Os peixes nadavam estranhamente, como a desenhar a figura sorridente do piruliteirinho louro no fundo do córrego. Veio-me, abrupto, um gosto de açúcar queimado na boca. Então me lembrei que o lago do Poço do Mato, de onde as águas vinham é um lugar de caruanas, habitantes/protetores do fundo das águas, que também são loirinhos como o piruliteiro que morreu num dia como o de hoje, às vésperas do Natal.

Imagem: Acervo pessoal - 1978

Um comentário:

  1. Ao contrário da grande maioria das pessoas, não costumo tomar o mêsde dezembro como sinônimo e festa e espaço temporal para o divertimento incessante. Sua atmosfera, de longe, para mim é lúgubre, cinzenta, fria, meio que sepulcral. Não sei por que, desde a infância tem sido assim, via de regra, a cada ciclo anual, deparo-me com um tempo de tristeza que, longe de incomodar, me faz um bem tremendo, trazendo chances inestimáveis de reflexões e condimentos interessantes de auto-estima. Algumas perdas contribúiram para esse estado, sem dúvida, mas, uma em particular marcou-me até hoje e, creio, para o resto da vida: a da criança (menina) morta pela própria madrasta, cujo nome era - ou é - Laudicéia. Foi na primeira metade do anos 1970, turbulento por si só por conta do famigerado Garrastazu Médici e seus "anos de chumbo", devia ter meus quatro ou cinco anos e a pequena e provinciana Macapá mais parecia um sítio composto de algumas dezenas de quarteirões com a nossa casa de "duas moradas" no final do Jacareacanga/Jesus de Nazaré. Uma mulher vil, tragada pelo ciúme e pelo ódio, assassinou cruelmente a enteada por conta - assim tentavam justificar minha mãe, avó e tias -do apego que o marido tinha pela filha e que a ela não era dispensado. Pensando curar suas mágoas e ressentimentos, viu no crime a saída para resgatar a atenção do esposo e premeditadamente levou a criança à beira - hoje centro comercial e tentou matá-la jogando-a no rua do canal, próxima à antiga Doca da Fortaleza. Como um transeunte viu a criança debatendo-se pela vida, salvou-a da morte, a dita interviu dizendo ao bom homem que a criança era sua filha e agradecendo o nobre gesto levou-a consigo para um lugar ermo afogou a criança num daqueles lagos da Rodovia do Pacoval, alí próximo ao Jandiá, ao Cidade Nova, num lugar que também era con hecido como "Gadelha", sei lá o porquê. Descoberto o crime e a autoria, Laudicéia ou Laudicéa - em nada importa a grafia, passou a ser um nome incômodo em toda a minha vida a partir de então. Sinônimo de crueldade e assassinato, associei ao Médici e todos os autores de crimes hediondos. Pasmem: era capaz de, mesmo depois de adulto, associar tal palavra a tudo o que não prestava e media até mesmo o caráter da pessoa pelo nome. Laudicéia/JudasGarrastazu/Fleury (membros de uma corja repugnante de assassinos covardes cujas encarnações precedentes atiraram pedras na cruz w e preferiram mil vezes Barrabaz ao próprio salvador do mundo. E a criança? A saudade do pai, parentes e pessoas de bem que, como o Fernando Canto e sua vizinhança se compadeceram pela triste fim do pequenino vendedor de pirulitos? Todo mundo sofre um pouco ou muito. Algumas pessoas, contudo, guardam essas lembranças amargas e o espectro dessas mortes passam a acompanhá-las pelo resto da vida, com maior impacto nas quando se aproximam e ocorrem as datas de cada sinistro. A propósito: não lembro se o crime ocorreu no final do ano,não tenho como consultar minha mãe agora, somente mais tarde, mas é fato que aprendemos com tais episódios, refletimos, julgamos condenando ou absolvemos de conformidade com a aquiescência do nosso caráter e com a jurisprudência do nosso censo e sob o beneplácito de nosso arcabouço moral, de nosso domínio intelectual e todo o peso das crenças advindas de nossa religiosidade.

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