quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

UM CARA BACANA (*)

Conto de Fernando Canto

09h10

Os artistas passam anônimos nas alamedas, balançando o penacho oculto de pavão. São seres indizíveis no desfile dual da vida, ainda que conviver com antagonismo como eles convivem não seja o ridículo aparato da necessidade de viver. Acho que é conveniência deles, quando transpõem a cortina dos dias. Eles passam como misses na passarela, olhando com desdém a plateia que não lhe conhece o potencial. E levantam os narizes e zunem balangandãs sob o olhar subestimador dos transeuntes, seres de rostos anônimos, marcados por etiquetas famosas nos jeans-bolsas-saias-camisas. Os artistas prosseguem empanturrados de esperança, pensando nos próximos espetáculos que montarão. Os passantes cumprem sua missão: passam. E eu aqui neste banco só olho, vadiando a manhã com a cumplicidade deste vento ameno e de uma sombra companheira. Acho que hoje ela passará. Hoje eu falo com ela, ah, se falo.

10h01

É mediante o dia eu se movem e se organizam as maiores discrepâncias da sociedade. Cada atitude é como atirar para dar certo no escuro, não obstante erros elementares, desses que os estatísticos costumam louvar os resultados, mostrando orgulhosamente tabelas, gráficos e medindo probabilidades. E assim vão agindo os produtores da vida social. Cada qual com o seu marketing, seja gritando para mostrar o seu produto, seja em silêncio, mas com o estigma de feroz inimigo do ritual viver. Barulho: ruídos incessantes sob os sinais luminosos que simbolizam a eterna passagem do lado bom para o outro lado da rua e da vida. Presa/presa/presa. Passagem ritual uma ova! O desejo do camelô pela bunda rebolante da moça que passa é o mesmo que tenho pela garota que espero, até agora com certa paciência. O camelô, privilegiadíssimo no seu ponto, vende óculos escuros e relógios, categóricas representações do capitalismo que me devora todos os dias. Vende visões de mundo e tempos que rastejam enquanto a barba cresce, como diria um famoso locutor esportivo. Porra, o tempo passa! Fumaça/ pressa/ fumaça/ fome.

13h25

Que diabos! Me flagro com uma inveja roedora daquele mendigo que come um sanduíche perto da banca de revista. Os transeuntes passam como passa o tempo e um ou outro jogam moedas na latinha daquele comilão. São almas caridosas que querem ficar bem com Deus. Lampejos reacionários me batem. Logo eu, um cara eu frequentou a Universidade. Leu tanto pra quê? Pra ficar invejando mendigo, me vulgarizando apenas porque tô esperando passar uma mulher que quero conquistar? Ora, também tirar férias sem poder viajar não ia dar noutra. Moro perto, vou ficar por aqui vendo se ela passa. O mendigo parou de comer, começou o trabalho de pedir e meu estômago se retrai, mas dói. Vou desforrar toda esta fome almoçando ou jantando com aquela mulher, ó se vou.

13h44

A moça escorrega na casca de manga pertinho de mim. Viro a cara para não rir, diferente dos passantes que riem alto e cada vez se apressam mais devido as pancadinhas de chuvisco. Me pergunto: ora, seu Reginaldo, porque não ajudou a moça? Que historia é essa de rir da desgraça alheia? Ridículo é você mesmo, seu imbecil, grosso, mal-educado devia era ajudar os que precisam. Minha consciência tarda mas não falha. A queda/ a queda/ a queda. É abismal essa queda que eu não queria em mim. Tô num poço, me remoendo. Custo pra sair. Saio, mas não saio intato, alguma coisa ficou lá dentro. E essa mulher não vem...

14h14

Correr protegendo a cabeça com um jornal é um gesto cultural por estas plagas. Fato repetido todas as tardes. E eu sonhando: “a girar/ que maravilha”. O Jorge Ben é que é um cara de sorte. Chuva inesperada requer abrigo improvisado, ainda mais para um vadio como eu e para os passantes entiquetados. Só se caísse um raio e partisse essa mangueira, refúgio de dezenas. Me abrigo sob guarda-chuvas coloridos. De repente, atletas insuspeitáveis arrancam os cordões de duas garotas indefesas, deixam marcas vermelhas nas jugulares e uma experiência inesquecível para elas. Correm/ correm... Adiante apanham a bolsa de uma velhinha que grita nervosa. O PM sai do box e consegue pegar um dos atletas que escorregou na grama molhada. Toma-te covarde! Te fode, bandido. Ah, se desse pra eu correr atrás desses caras, eles iam ver com quantos paus se faz uma canoa. Mas aí é que tá, se eu fizesse isso podia era me dar mal. Será que essa gente não entende que é obrigação da polícia fazer esses baratos, prender os bandidos. Revolta. Contida por causa da chuva. Entre comentários, suspiros de conformismo e desejo de heroísmo essa gente parece até que se conhece. Que conversa esfarelada, cara. Gente que nunca se viu conversando bravatas como velhos amigos. Eu heim!? A última refrega de vento também leva os caras chatos. Ainda bem. Martela em minha cabeça o último verso da música do Jorge Ben: “A girar/ Que maravilha” (bis). Ela tem que vir, de branco ou colorida.

15h43

“Vai graxa aí, doutor?” Pô, mais um moleque pra me aporrinhar a paciência, encher a perema... Uns quatro já passaram por aqui querendo trocados. Já dei todos os meus borós. Esses moleques deveriam estar plantando batata, cebola, cenoura, pepino... pra enfiarem uns nos outros. Não vê que tô ocupado, que droga! Tô de tênis garotão. Vai engraxar o samello do marajá lá no Hilton. Quando ela passar por aqui, perfumando a praça, hum, vou convidá-la para tomar um chopp, uma gelada, ou pra jantar. A hora é incerta, mas ela passa aqui todos os dias. Ela virá com seu andar de cobra. Penso que estou com fixação, mas dispenso logo esse pensar imbecil. Ela virá. E ponto.

16h37

Não cedo, não estou a fim de coisas estapafúrdias, de lero-lero. Meu lance é outro, é uma garota bonita e gostosa, já dizia a Rita. A imagem da gente girando na chuva... Que coisa boa! Mas esse fresco aí do lado me perguntando se sou daqui, se sou do projeto Rondon, do Rio, se conheço os pontos pitorescos da cidade, se já fui ao Palácio dos Bares, ao Bar do Parque, ao 3x4... Caramba! Só falta perguntar se tenho mãe. Ó, não disse? Que camaradinha mais fulera! Até que compreendo sua conduta, mas encher meu saco só porque estou só? Eu tô cheio de amor pra dar, mas não o amor que esse cara aí quer. Espera lá... Será que não sou igualzinho a ele? Estaríamos na mesma condição? Que sôfrego amor é esse por alguém que eu nem conheço, que só vejo passar? Será que a boneca também não vem me observando? Santa burridade! Eu acho que é por aí. Cada qual com sua arma para conquistar o que quer, com seu coração desamado e esperançoso. Ele pelo seu lado, eu pelo meu. Mas ele tá me chateando. Só que não vou sair deste banco. Ai que vontade de mijar. Nem pensar. Ele desiste e eu fico aqui no meu poleiro, melhor dizendo, no meu covil, emboscado para dar o bote final. Falta pouco pra ela passar, ai eu...

17h08

A vontade de ir ao banheiro aumenta, mas daqui não arredo o pé, mesmo com a bunda doendo de tanto sentar. Aluguei este banco e daqui não saio. O movimento do comércio arrefece e até o mendigo que merendava já se foi. Poucos são as transeuntes. Crianças brincam com velocípedes e bolas em meio a uma grande gritaria. O sol efêmero da tarde pinga raios entre as folhagens das mangueiras. E a garota nada de passar. Resisto. Tempo passando, eu de olho no relógio. A garotada mais velha pressiona os adultos: queremos pipoca-bombons-chocolate-picolé-coca-cola... Haja grana! Sei o que é isso de felicidade trocada pelo suor. Momentos de prazer, digamos, momentos de trocados interesses. Furto recíproco do meu/ teu ideal de amor. Ora amor. Tô aqui quase (- Quase?) platônico respirando água e a luz da tarde, abstraindo contusões espirituais. É, me machuco pensando nela. Quero poder senti-la em meus braços. Essas crianças me aborrecem...

18h20

Tem que ser agora. Tô quase não desistindo. Começa a escurecer, a formar nuvens negras lá por cima dos espigões . Vento/ vento/ vento. Cabelos revoltos e eu sem pente. Coisa mais careta! Espera lá... Explode coração! Lá vem, Reginaldo, lá vem a gostosona. E de branco. É hoje. Tem que ser, não tenho o nariz furado pra cima. Que sensação! Pareço galo cercando galinha. Pulsa/ pulsa/ pulsa o coração. Tremo de nervosismo aqui neste covil, me preparando para dar o bote (- Será que vou dar conta?). Já não tô tão seguro de mim. É agora, é agora... Que coisa esquisita. Sensação de calor, frio na cabeça, água escorrendo nas pernas. Porra, me mijei. E agora? Ela passa, olha pra mim e ri. Eu morro de vergonha, caindo num fosso profundo. Ela riu de mim. Putapariu, ela riu, ela me viu todo molhadinho. Ai meu Deus, tô lá no fundo do poço. Cadê meu revólver, uma faca, uma corda. Quero me matar, quero sumir. Ai que vergonha. Um cara bacana como eu numa situação dessas. Ridículo, ridículo. Logo comigo isso foi acontecer. Só falta o céu desabar na minha cabeça...Brrruummmm! Essa é de alagar a cidade. Levanto e caminho pelos passeios da praça com a impressão de que a chuva cai somente sobre mim. Tô no fundo do poço morrendo de sede. Pô, a gente fica fissurado por uma pessoa, divagando, apreciando o movimento pra ganhar o quê? Um baita de um deboche. A bicha que tentou me cantar é que tá certa. Acho que vou procurar por ela. Tô na merda mesmo. E essa chuva não passa... “A girar/ que maravilha”... Que azar, logo comigo, logo eu, um cara bacana...

(*) Publicado no livro “O Bálsamo e Outros Contos Insanos”. Ed.ufpa, Belém, 1995.

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