Por Fernando Canto
1.
INTRODUÇÃO
Imaginemos a surpresa
dos portugueses ao chegarem ao Brasil de 1500. Os índios ali, saudáveis ao
ponto de serem elogiados por Caminha, o escravidão da frota de Cabral: “andam
muito bem curados e muito limpos; os corpos seus são tão limpos e tão gordos e
tão formosos que não podem ser mais...” E adiante a conclusão de Caminha :
“eram gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva” (Cavalcante, 1995).
Não muito distante José
Bonifácio de Andrade e Silva “advogava que se aumentasse a riqueza nacional
através do uso do conhecimento científico e defendia a necessidade de se
removerem” os índios de sua “preguiça e sua ignorância, a fim de leva-los ao
progresso.” (Cavalcante, 1995).
Todos esses relatos são
importantes para enfatizar a visão do dominador sobre a atitude indígena
perante a natureza, haja vista, por serem primitivos não conheciam a roda e nem
a propriedade privada.
Por outro lado
conheciam sabiamente a natureza e respeitavam as normas desenvolvidas por eles
mesmos a respeito do manejo ambiental, anticoncepção, silvicultura, caça, pesca
e cura de doenças.
Por isto, o objetivo do
presente trabalho é apenas buscar a compreensão do substantivo preguiça
relacionando ao indígena. Algo que de tão citado pelos viajantes e cientistas,
desde o Descobrimento, hoje foi transferido para outras categorias de pessoas
como os caboclos, caiçaras e caipiras, mas sempre com a mesma conotação
irônica, pejorativa, às vezes autoritária pelos que veem de fora para dentro.
Para ilustrar o texto
apresentamos inicialmente a breve “estória de preguiçoso”1 que
servirá de base para análise em epígrafe.
2.
ESTÓRIAS DO PREGUIÇOSO
Um homem morava num lugar muito
bonito e farto, tendo ali, além de sua casa, uma grande roça.
Sua casa ficava perto de um lago,
de águas amarelas, onde viviam peixes de todas as espécies.
Mas, de vez em quando, saia para
pescar e caçar, mais abaixo de seu lugar, num sítio que tinha um igarapé e uma
vazante. Boa de plantar, e terras pretas muito boas para roça.
Naquele igarapé apareciam muitos
peixes e bichos de casca. E nas suas matas viviam antas, veados, cutias, pacas,
macacos, mutuns, inhambus, macucauás. Os patos e marcas mais gordos eram das
cabeceiras desse igarapé.
Um dia esse homem disse à sua
gente:
- Vamos passar alguns dias na nossa
barraca do igarapé, fazer uma farinhada e beber caxiri à vontade. Aqui temos. E
ali não nos falta nada.
Arrumaram todas as suas coisas e
foram.
Mas esqueceram de levar um tipiti.
Lá o homem convidou os irmãos os
cunhados para pescarem e desmancharem parte da roça.
E perguntou o cunhado mais moço:
- Queres ir conosco ou queres
ficar? Um de nós tem que ficar para fazer um tipiti.
Esse cunhado, que era muito
preguiço preferiu ficar, dizendo:
- Eu quero.
- Sabes fazer tipiti?
- Sei...
- Então, fica.
Mal o seu cunhado virou as costas,
acompanhado de sua gente, o preguiçoso se meteu na rede. Passou ali algumas
horas sem fazer nada. E, já ao meio dia, pulou da rede e foi apanhar arumã,
para preparar as telas e fazer um tipiti.
De volta, sentou-se numa esteira,
diante de um monte de folhas de arumã.
Mas não conseguia trançar as talas
e fazer o tipiti.
Depois de muito pelejar, o
preguiçoso foi à beira o igarapé, levando uma cuia de caldo de tucupi, para
tinguijar tamuatás.
Conseguiu pegar um tamuatá e o
levou para a barraca do cunhado. Ele queria ver se, olhando as placas do peixe,
aprendia a fazer o trançado de tipiti. Mas nada conseguiu.
Nisso chegou o homem com a sua
mulher, filhos e cunhados, carregando daruanas de peixes e aturás e jamaxis
pesados de frutos e de raízes de mandioca.
Vinham todos com muita fome e muita
sede. E as mulheres trataram logo de moquear o peixe e de fazer tamorida.
O homem, então, perguntou ao preguiçoso:
- Já fizeste o tipiti?
- Não, não acertei fazer.
E contou que tinha apanhado um
tamuatá para, olhando-lhe as placas do corpo, aprender a fazer o trançado do
tipiti.
O homem falou zangado com o
preguiçoso, falou, falou, e apanhou as telas de arumã e foi fazendo o tipiti.
E todo o tempo esteve resmungando.
- Se não sabias tecer o tipiti, por
que mentiste? Agora todo mundo sabe eu és um preguiçoso e um mentiroso.
Como o homem trabalhava depressa,
logo aprontou o tipiti.
- E chamou seus irmãos e cunhados:
- Segurem esse meu cunhado. Para
castigar bem, vamos metê-lo no tipiti.
Assim fizeram. O cunhado gritava e
eles riam, riam.
- Esticaram, esticaram o tipiti. E
o preguiçoso dentro daquele trançado, nem podia respirar e do corpo dele
começou a pingar sangue grosso, parecido com o caldo de tucupi pixuna.
- Depois retiraram e o deixaram no
chão mole, mole.
- E foram comer peixe moqueado e
beber caxiri.
Depois da farinhada o homem disse à
sua gente:
- Preparem tudo para sairmos amanhã
cedo. Vamos voltar para nossa casa.
- o preguiçoso disse à mulher que
não iria com os cunhados, que ainda ia pescar.
No dia seguinte, o homem foi embora
com a sua gente, deixando o preguiçoso e a mulher na barraca do sítio.
Assim que pareceu ao preguiçoso já
irem muito distante, o seu cunhado e sua gente, saltou sobre a mulher e a matou
a pau.
Depois foi jogar, do lado de lá do
igarapé, o cadáver da mulher.
O fígado da mulher, porém, virou
cancan e pulou para o galho de uma árvore da beira do igarapé. E o cancan se
pôs a cantar: Cá, cá, cá, cá/ Carimén carimén carimén carimén/uatánua uatánua uatánua
uatánua/ Cá, cá, cá, cá (Anda depressa. Foge, foge. Meus irmãos já vem aí.)
O preguiçoso, ouvindo o cancan
cantar, tirou casca de pau, fez uma canoa grande e remos. E fugiu, rio abaixo,
assim que saiu do igarapé.
Os irmãos da mulher do mentiroso
ouviram o cancan cantar, no alto de pau: Pinduana ruiane paidéidearo (O
mentiroso matou a mulher) / Itiuanêhe (cortou-a) / Içu tane iquibá (tirou-lhe o
fígado) / Içu tane quibá /Inipute Nêne quiái ni
Os irmãos da mulher saíram, pelo
rio abaixo, à procura do preguiçoso.
E só encontraram bolhas de espumas,
mostrando que a canoa dele havia passado por ali.
Remaram, remaram, remaram. E só
encontraram bolhas de espumas.
Nunca ninguém encontrou o
preguiçoso.
A nosso ver a história
acima serve para ilustrar, de um lado, um aspecto com o qual convivemos quase
que diariamente nas chamadas sociedades urbanas brasileiras: o etnocentrismo.
De outro o convívio dos indígenas com a preguiça, considerado como um estado
semiletárgico, mais propriamente aversão ao trabalho, indolência, negligência.
A princípio, tanto para
os habitantes das cidades como para os indígenas a preguiça parece ter o mesmo
significado e o mesmo valor. Valor que se torna negativo à medida que ela, a
preguiça, se estabelece de forma perniciosa e prejudicial para as relações
sociais dos grupos. A diferença do conceito de cada lado parece estar na pena
aplicada: é comum em nossa sociedade desdenharmos do preguiçoso e do mentiroso.
Nosso repertório anedótico está eivado de fatos aumentados, extraídos da realidade.
Mas convivemos com a preguiça e com a mentira de modo quase pacífico.
Naturalmente que em
qualquer sociedade “civilizada” existem leis que regem o comportamento do
individuo, lieis que controlam a reação do homem e seu trabalho para que este
esteja o “instrumento de progresso e do desenvolvimento”.
Grosso modo não há
lugar para o preguiçoso na sociedade capitalista urbana. Ou ele trabalha ou
nada ganhará para se manter. Entretanto essa afirmação não se entende ao que
poderíamos chamar de classes marginalizadas, que em função das contingências
econômica, políticas e sociais, dedicam-se ao ganho fácil e à exploração,
através do medo e da violência, sujeitando-se, portanto às penalidades da lei.
A preguiça é fato
universal, ora, tantas vezes ela não foi vista como antagônica à riqueza, como
sinônimo de pobreza? Aliás a sesta é um desses estigmas que permanecem na vida
cultural dos países latino-americanos.
Por outro lado não foi
à toa que o mundo capitalista ilustrou e reproduziu a fábula de La Fontaine “A
Cigarra e a Formiga” como protótipo do valor do trabalho, ainda que de forma
cruel, pois até certo tempo ninguém considerava o trabalho de cantar (da
cigarra “preguiçosa” que nada queria com o trabalho, no conceito das formigas)
como elemento de redução do estresse, ou algo romântico, ao contrário das
formigas que trabalhavam duramente, acumulando alimentos para se proverem no
inverno.
Tal fábula demonstra a
ideia de acumulação de capital e de prevenção contra os tempos ruins que por
ventura podem surgir, como as catástrofes, a inflação, doenças, crises e a
penúria. E tal ideologia incutida na educação infantil reproduz-se e promove o
etnocentrismo.
É indiscutível,
portanto a mentalidade capitalista sobre o
modus vivendi indígena. Para o capitalismo que assola nossas fronteiras,
explorando florestas, espoliando o homem ribeirinho, o pescador, o coletor e,
sobretudo o elemento índio, o que não se fizer para se explorar ao máximo os
recursos naturais é considerado assaz um gesto de traição cívica, pois os
dirigentes dizem que a pátria precisa se desenvolver. O índio e o caboclo
trazem em seu mundo um rio de peixes, uma floresta de caças e frutos
abundantes. Para eles a paz da natureza, a proteção a ela são valores reais e indissolúveis
de sua vida, daí que o trabalho duro, do modo capitalista de pensar não
justificaria uma mudança radical no seu modo de vida.
Essa é uma visão um
tanto ingênua, mas que é justificada pela penetração de conceitos capitalistas
no seio de uma comunidade de símbolos e valores diferentes dos do homem branco,
o qual por sua vez justifica seus atos avassaladores através da força e da
violência como meios para estabelecer sua ideologia de progresso em regiões que
possuem potenciais a serem explorados, sendo eles objetos de ganância e nem
sempre amparados por lei.
Ao índio preguiçoso da
estória punição foi metê-lo dentro de um tipiti até sangrar. Foi o castigo para
os eu não aprendem a reproduzir sua própria tecnologia. Para o homem da cidade
a pena é o desdém, o deboche, a ausência de credibilidade e obstáculo a um
prestígio maior. Nessas condições (viciosas) o homem da cidade anda em círculo:
da indisposição à doença, da falta de trabalho à ausência de dinheiro, da fome
à indisposição para o trabalho e assim por diante.
No aspecto religioso,
cristão, os ocidentais olham a preguiça como um dos sete pecados capitais, cuja
pena ao preguiçoso é uma nova vida miserável a arder no fogo do inferno, após a
morte.
3.
CONCLUSÃO
Compreende-se
que enquanto mito, a estória do preguiçoso traz em seu bojo inúmeras
possibilidades de análise. A preguiça não se estabelece como um defeito que se
opõe ao valor do trabalho, pois no grupo tribal ele existe para garantir a
sobrevivência dos indivíduos. Cada ato de preguiça intervém no relacionamento
tribal, com ela deixa de existir a confiança e o parentesco anula-se com o
castigo imposto, ainda que ao índio preguiçoso fosse dada uma tarefa para
ajudar na festa (“E foram comer peixe moqueado e beber caxiri”). Em seguida,
após a humilhação sofrida, o preguiçoso se vinga dos parentes matando a mulher.
Mesmo procurando por eles após o aviso do “fígado da mulher” (que virou cancan)
ele não é mais encontrado.
O
final da estória não só ilustra a ideologia do poder (força, respeito) daquele
chefe indígena, mas também é uma forma de extinguir o defeito que é considerado
um obstáculo nas relações sociais e na sua visão de mundo, ao contrário do
conceito “normal” das sociedades urbanas onde a preguiça também é vista como
entrave ao desenvolvimento, mas, paradoxalmente, não chega a prejudicar tanto
as relações sociais. Daí a visão etnocentrista das sociedades urbanas. Há
conceitos sobre conceito. Há visões de mundo sobre a preguiça. É um estereótipo
difícil de ser extinto. Ele representa na realidade uma das inúmeras
justificativas para a dominação e extinção do índio e a consequente exploração
de suas riquezas.
4.
BIBLIOGRAFIA
1. PEREIRA,
Nunes. Moronguetá, Um Decameron Indígena, Ed. Civilização Brasileira, Vol 1.
2ªEd. Brasília – DF,1980
2. CAVALCANTI,
Clóvis. Sustentabilidade e Economia e Paradigmas Alternativos de Realização
Econômica, in Desenvolvimento e Natureza: Estudos para uma Sociedade
Sustentável – C. Cavalcanti (org.) Ed. Cortez, d. Cortez, Recife – PE, 1995.
3. SIMONIAN,
Lígia. Sustentabilidade e Política Recente para Indígenas “Autônomos no
Brasil”, in Ximenes, T. (org.) Perspectivas do Desenvolvimento Sustentável,
Belém, PA. UFPa/NAEA/UNAMA, 1997
4. D’ORBIGNY,
Alcide. Viagem Pitoresca através do Brasil. Ed. Itatiaia. São Paulo – SP, 1976
5. MELL
O, Luiz Gonzaga. Antropologia Cultural, Ed. Vozes, Petrópolis – RJ, 5ª Ed. 1991
6. LIMA,
Deborah de M.. Equidade, Desenvolvimento Sustentável e Preservação da
Biodiversidade: Algumas Questões Sobre a Parceria Ecológica na Amazônia. In
Castro E. & Pinton, F. Faces do Tópico Úmido: Conceitos e Questões Sobre o
Desenvolvimento do Meio Ambiente, Belém – PA, SEJUP UFPa/NEA, 1997
(*) Apresentado no
Curso de Especialização em Desenvolvimento Sustentável e Gestão Ambiental
–UFPA/NAEA-GEA/CEFORH), 1999.
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