Texto de Fernando Canto
Não há duvida que a capacidade de
decidir o destino das cidades, em primeira instância, está nas cabeças e nas
mãos daqueles que as governam, alicerçados naturalmente, pela confiança
depositada através do voto da população.
Em que pese os valores democráticos,
os gestores municipais, enfrentam inúmeros problemas de ordem financeira, cujas
condições não permitem priorizar, quase nunca, o aspecto urbano como elemento
de real primazia no contexto administrativo.
A ausência de uma política urbana
bem definida e com planejamento adequado, incorre uma série de desacertos
sócio-espaciais, que podem atingir graus irreversíveis, os quais levam à
prejuízos à população e com isso proporciona cada vez mais deficiência na
qualidade dos serviços públicos à disposição da sociedade, como os serviços de
transporte coletivo, energia, abastecimento, água e saneamento.
Na verdade, as atitudes dos governos
se pautam em decisões políticas, portanto, a prática dos procedimentos
administrativos nem sempre correspondem às expectativas dos técnicos,
servidores públicos, setor privado, e da população em geral, ou muitas vezes,
algumas ações tomadas violentam as paisagens naturais e culturais da cidade
justificadas e, detrimento da melhoria da qualidade de vida da população.
Quando se fala em preservação
ambiental urbana, normalmente se pensa na sua ausência e lamenta-se a
depredação a poluição e o descaso dos gestores municipais.
Hoje o cidadão convive com essa
situação por falta de carinho, amor e de consciência coletiva para com a
cidade, considerando também a absoluta falta de políticas públicas. Acredita-se
que o habitante da cidade é incapaz de zelar o maior patrimônio que tem, porque
acha que não lhe cabe tal obrigação, e por isso deixa a questão do lixo para a
Prefeitura, a do esgoto para a Companhia de Saneamento, a das redes elétricas
para a Companhia de energia e assim por diante. Porém, não observa que
diariamente comete infrações, como as próprias entidades responsáveis pela
conservação da cidade, jogando lixo nas ruas, sonegando impostos, sujando
calçadas, pixando muros, cortando árvores sem autorização ou a devida
orientação para não prejudicar a arborização da cidade, mas apenas conforme
suas comodidades.
A cidade é o grande lar, pois nela
se habita e se constrói famílias. Isto posto, convém afirmar que há necessidade
de se construir uma política urbana coerente e adequada, com funcionalidade,
para evitar problemas sérios de ambientação. Portanto a Prefeitura é o órgão
responsável por essa missão, considerando que é dotada de competência legal,
cabendo-lhe a ordem e a manutenção dos serviços básicos do município em relação
a sua população. Quando isso não acontece, o povo, com razão, certamente se
revolta com o sistema e desabafa levantando críticas nos bares, clubes,
repartições públicas, ruas ... ocorre aí, um sentimento de castração já que o
cidadão não sabe nem sequer a quem recorrer, talvez às associações de Bairros,
Câmara de Vereadores, ao Judiciário, por meio de por meio de ações populares.
Mesmo assim, nem sempre é possível contornar o poder de uma decisão política
oportunista e eivada de demagogia, onde está nítida a força de interesses
imediatos e pessoais em detrimento de uma ação duradoura que realmente possa
beneficiar a comunidade.
Por outro lado, os gestores
municipais reclamam não possuir recursos suficientes para asfaltar ruas, manter
logradouros públicos, promover o tratamento adequado do lixo, etc. e, no
entanto, utilizam nos recursos públicos sem planejamento condizente com as
necessidades urbanas.
A compra de novos equipamentos e a
reforma de prédios públicos a título de modernização, em detrimento das
necessidades básicos do aparelhamento urbano, significa uma tentativa de
assassinato da cidade.
Tomemos como exemplo uma cidade de
porte médio de Macapá na qual vivemos e sentimos seus problemas. É visível o
estado de abandono em que ela se encontra.
MACAPÁ, UMA HISTÓRIA DE DESCASO E
DESAMOR
Poucos
foram os administradores municipais que se preocuparam com o futuro da capital
amapaense. E muitas das decisões que foram tomadas para que ela fosse o que é
hoje em seu traçado e distribuição espacial foram arbitrárias. Sabe-se que as
ações dirigidas nesse sentido sempre trazem consequências deletérias sociais e
culturais em que pese fazê-las por “necessidade”.
Quando foi instalado o primeiro
governo amapaense, em Janeiro de 1994, “o medo e a expectativa daquele pequeno
núcleo populacional que começava na Rua da Praia acabava atrás da igreja de São
José” (Cunha: 1954) Janary Nunes, o primeiro governador do então Território
Federal do Amapá, tinha por objetivo o trinômio “Construir-Educar-Sanear”, onde
o sanear veio significar, também, o
expurgo cultural da população de origem negra que habitava a frente da cidade.
Articulações de conchavos permitiram
o remanejamento dessa população para lugares mais afastados do centro e da
frente da cidade, como o Laguinho, a Favela e o Igarapé das Mulheres nos quais
os negros fincaram esteios e construíram suas casas. A Janary importava uma
urbanização, onde pudesse comandar os funcionários que aqui chegavam com todo o
poder que tinha. E esse poder era grande porque precisava mostrar trabalho, já
que dinheiro não lhe faltava.
Os negros cantavam seus lamentos nos
ladrões (música) de Marabaixo (dança
folclórica local) dizendo: “As ruas de Macapá/ Estão cheias de bangalô/ Essas
casas foram feitas/ Pra só morar os doto”, ou então: “Vou-me embora, Vou-me
embora/ Que de mim ninguém tem dó/ Esse maldito Janary/ Me jogou lá pro igapó”
ou: “Aonde tu vais rapaz/ Por esse caminho sozinho/ Vou fazer minha morada/ Lá
nos campos do Laguinho”. Ou ainda versos esparsos como “Não tenho pena da
terra/ Só tenho do meu coqueiro”.
Ora, não ter pena da terra, mas ter
do coqueiro vem significar um abrupto rompimento com o passado onde estavam
postos anos de trabalho e uma relação insofismável com a propriedade. Significa
o rebentar do vínculo que une o modo de vida com o espaço que caracteriza a
continuidade da vida. É, a bem dizer, a despedida de uma de uma forma segura de
viver e um incerto começar de novo.
Até aí os habitantes locais pagaram
o imposto do sonho do Janary. E seus tímidos protestos através da canção, da
tradição e da poesia não surtiram efeito, ao contrário, as ações governamentais
dos prefeitos nomeados tiveram por longos anos conseqüências drásticas.
Ao lado do “progresso” que o
primeiro governador do Amapá punha em prática através da construção civil, da
abertura das ruas e do delineamento dos espaços públicos, estava a sólida
proposta nacionalista da raça trabalhadora para formação de uma “civilização”,
uma utopia decantada por Gilberto Freire. E o país vivia sob os cuidados de um
Getúlio Vargas simpático à Alemanha nazista.
Aqui, Janary Nunes criou e fez
espalhar aos quatro ventos a “Mística do Amapá”, uma ideologia carregada de
condicionamentos positivistas, onde a Ordem
haveria de gerar o Progresso, nem que
fosse à força.
Macapá cresceu, pois se tornou um
pólo de desenvolvimento e um grande mercado de emprego para funcionários
públicos. Migrantes de todo o país aqui chegaram para viver na dependência do
dinheiro governamental.
Um dia os militares deram um golpe
de estado e o medo novamente tomou conta dos habitantes da cidade. Certa vez um
general-governador motivado pelo espírito da chamada Revolução de 1964, tentou
reorganizá-la. Para tanto contratou máquinas e empreiteiros para abrir a
Avenida Mendonça Furtado do início ao fim. Estava simplesmente tentando derrubar
o mais antigo monumento histórico da cidade: a igreja da São José, inaugurada
em 06/03/1764. Isso ocorreu no início da década de 70.
Tal ação só não foi levada à frente
graças aos fervorosos católicos e não por pessoas preocupadas com a preservação
do patrimônio histórico, por amantes da cidade ou técnicos em planejamento
urbano.
Mais tarde, novos propósitos e
interesses políticos explodiram no Amapá: a transformação do Território em
Estado.
Com a divulgação da novidade,
milhares de pessoas para cá se deslocaram em busca de uma nova vida. Uns
atraídos pelos incentivos fiscais da SUDAM, outros em busca de terras e riqueza
fácil. Muitos com real desejo de contribuir com seu trabalho para o
desenvolvimento dessa terra. Mas a maioria veio mesmo em busca de assistência
social, saúde, educação, emprego e um pedaço de terra para construir sua casa.
Enquanto no nordeste os
administradores colocavam barricadas nas estradas para impedir a entrada de
retirantes na cidade, com receio de saques e para proteger a riqueza da
burguesia citadina, em Macapá a antiga Secretaria de Promoção Social pregava
tabuletas e placas nos aeroportos, estradas e portos com os dizeres: Seja
bem-vindo senhor migrante. Evidente que são duas condições históricas
diferentes, mas que no fundo se assemelham no propósito do fortalecimento do
poder. A primeira protege a burguesia e a segunda garante um novo reduto
eleitoral.
Com a atitude do Governo em relação
à migração iniciou-se um processo de cinturalização periférica de quase absoluta
miséria, pois os mesmos órgãos que incentivavam a migração não deram condições
de sobrevivência e assistência adequada para que essa nova população
sobrevivesse. E mais: a cidade não oferecia condições de infraestrutura e
serviços para a instalação dessa população. Mesmo assim os votos para uma
futura grande eleição estavam garantidos.
Criaram-se novos bairros,
remodelaram-se outros para que a cidade se “embelezasse”. Mas como conter
outros problemas populacionais se Macapá estava inchada, estranguladas por
vetores como a área da Infraero, o rio Amazonas, as propriedades particulares,
na saída da cidade, ao sul pela mesma causa e ao oeste por área militar e pela
Lagoa dos Índios? O certo é que antigas capoeiras e cerrados da periferia deram
vez a amontoados de casas frágeis e construídas às pressas onde milhares de
pessoas viviam sob precárias condições de vida.
Macapá teve quatro grandes planos de
desenvolvimento urbano encomendados à companhias especializadas. Nenhum foi
executado. E o que dizer então da Preservação Ambiental Urbana? Como poderemos
tê-la se não há planejamento adequado e as decisões não são exatamente para
preservar?
Quem vive sob a inclemência do sol
equatorial é que sente a ausência de arborização. Quem freqüenta as praias é
que sabe das micoses em sua pele. Quem anda nas ruas é que sabe dos prejuízos
que os buracos podem causar. As Leis e Códigos parecem estar engavetados na
prefeitura, pois nunca se ouve falar de punições a quem infringiu o código de
Posturas Municipais, a lei do Uso do Solo e o Código de Obras com a
fiscalização de edificações que comprometem o ambiente urbano.
Ao cidadão macapaense resta ficar em
estado de alerta, pois se não for assim ela já tem pronta a saída para a
verticalização, onde muitos se privarão
de uma série de benefícios como a arborização dos quintais, o vento do
rio-mar (rio Amazonas) e o sol reconstituidor. Ao contrário terá sombreamento
inadequado, má circulação do vento, poluição visual e a terrível especulação
imobiliária com seus desdobramentos sociais e econômicos no tempo e no espaço
urbano.
Resta, então, que os atores sociais
alertem-se para a execução de medidas de rotinas como a prevenção de incêndios
e alagamentos, a coleta de lixo, aterros ilegais de ressacas e baixadas, a
conservação de logradouros públicos, a aprovação de projetos de construções com
vistoria e fiscalização, o planejamento urbano, o controle da Lei do Uso do
Solo, a tributação imobiliária, e para a especulação a política de concessões
públicas, entre elas os transportes urbanos, os alvarás de construção, a
destinação final de dejetos de matadouros e fábricas, entre tantas atividades
que todos têm o dever de saber para evitar o prejuízo da cidade.
Aí está o papel desses atores, pois
mudando ilegal e abruptamente o ambiente urbano, muitas outras coisas mudam
inclusive as tradições que sempre precisam ser revitalizadas nos seus ambientes
culturais.
Por isso deve-se discutir cada vez
mais a gestão ambiental urbana, sobre a aplicação que rege o comportamento
urbano dentro das cidades, sua relação recíproca e dependente com a área rural,
entre outros aspectos. Deve-se sobretudo buscar soluções sustentáveis aos
problemas ambientais aparentes e os que poderão surgir no futuro já que a ação
iconoclasta de sucessivos gestores municipais, deixaram um rastro de desolação
quase irreversível no ambiente urbano de Macapá.
Por isso precisa-se propor a cobrar ações que
garantam a melhoria da qualidade de vida dos habitantes das cidades e
justificar suas necessidades para que possam supri-las agora e para o futuro.
(*)
Texto apresentado no curso de Especialização Desenvolvimento Sustentável e
Gestão Ambiental. NAEA/UFPA – GEA/CEFORH – junho de 1999.
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