Por Hélio Pennafort
Hélio Pennafort. Foto: Juvenal Canto |
Foi numa boca de noite que três fedelhos do bairro
do Laguinho apareceram no departamento de jornalismo da rádio onde trabalhava a
fim de bater papo com a turma da reportagem. Um pouco atarefado na conclusão de
um texto para um programa de opinião, não pude prestar bem atenção na conversa,
mas deu pra escutar menções a Marcuse, Vietnã, Roda Viva, Lamarca, Sexus, Nexus
e Plexus, Guevara e outros modismos políticos, literários e musicais do
alvorecer anos 70, época em que tocar nisso aí não era coisa comum na imprensa
censurada e nos campus policiados.
A conversa prosseguiu até as tantas
da noite em outro local, o Bar do Tio Júlio, temperada agora com a bebida
preferida do reportariado: rum montila com picolé de taperebá dissolvido.
Quando não havia dospiano por perto, o recesso do botequim era ponto ideal para
trocar de ideias em voz alta. A plateia de biriteiros gostava de consumir o
lirismo, a indignação, os sonhos e o aporrinhamento que nessas ocasiões
escapavam das gargantas dos jovens. E aqueles três pertenciam ao Clã Liberal do
Laguinho, que agia na descoberta e na valorização de músicos, pintores e poetas
do bairro, além de cuidar das tradições e segurar um bom relacionamento com
todos os estratos culturais da cidade.
Clã Liberal do Laguinho - Encontro em 2006 |
Faziam parte do clã, entre outros o
poeta Silvio Leopoldo, o artista plástico Manoel Bispo e o jornalista (e também
poeta) Odilardo Lima, que fez a letra do melhor samba de exaltação ao Laguinho
de todos os tempos. As reuniões aconteciam no quintal do João de Deus e alguns
desses encontros mereceram até transmissão radiofônica. A época era também de
porralouquice explícita, resultado da repressão ostensiva. E evidente que o clã
tinha de ter entre os seus membros alguns azougados. Tanto que até hoje o padre
Francisco Benedetti, então vigário da paróquia de São Benedito, deve estar
arrependido de ter encomendado o desenho da capa de um boletim paroquial a um
dos melhores desenhistas do clã.
O boletim chegou a ser distribuído
por piedosas senhoras do apostolado da oração no final de uma missa de domingo.
A capa, desenhada pelo distinto, mostrava o sol despontando e um obelisco em
primeiro plano. À primeira vista, tratava-se do taco mais inocente do mundo,
próprio mesmo para ilustrar orações, avisos paroquianos e conselhos de vida.
Mas quando o padre prestou bem atenção foi um escarcéu sem precedentes na
sacristia da igreja do Laguinho. O obelisco, que quando olhado rapidamente
tinha a pureza de um igarapé, na realidade representava um bem disfarçado falo
intumescido no topo do qual havia duas palavrinhas, em letras microscópicas,
excomungadas pela Igreja: amor livre.
Músicas e poesias por aí afora
Os fedelhos que discutiam arte e pensavam poesia em torno de um copo com picolé eram o Olivar Cunha, o Ray Cunha e o Fernando Canto. Depois daquele papo foram agregados informalmente ao departamento de jornalismo (Rádio Educadora), participando e até opinando na elaboração de programas culturais.
Mais ou menos por esse tempo o
Fernando Canto e o Odilardo ajudaram a concretar a ideia de saltimbancar a cultura
pelo interior ao mesmo tempo produzir programas que expusessem pelo rádio o até
então desconhecido folclore regional, além, claro, do modo de vida do homem das
ribeiras.
Começamos pelo Igarapé do Lago, com
a equipe ampliada pela participação do Manoel (“Papa-Arroz”) João, emérito
contador de causos. Viajamos numa camioneta Willys nem muito nova nem muito
velha e levamos mais de duas horas daqui pra lá por causa da travessia da balsa
do [rio] Matapi e mesmo as condições da estrada não estavam boas. Na vila, o
pessoal aplaudiu a ideia e topou, na hora, compartilhar do encontro
“lítero-musical” logo depois do escurecer.
O Odilardo funcionava como
apresentador e declamador de poesias, o Fernando tocava e cantava os últimos
sucessos de Chico Buarque, Raul Seixas e pouca coisa da música amapaense que
tinha para entoar. Nem o Grupo Pilão existia ainda. Depois o Fernando
acompanhava ao violão os cantadores do lugar que se apresentavam em momentos de
muita alegria. E nesse clima de intercâmbio cultural acabávamos numa serenata à
beira do rio esperando o alvorecer que não demorava a chegar. E o pitoresco de
vez em quando dava as caras para animar ainda mais a viagem.
Casa de miriti, típica do interior do Amapá. Foto: Juvenal Canto |
Nessa passagem por Igarapé do Lago,
por exemplo, a troupe quase atrasa o
“espetáculo” por um motivo que nos deixou rindo a noite toda. Tardinha fomos
tomar banho de igarapé, onde se chega por uma ponte estreita e comprida. Antes,
porém, paramos num bar que fica no começo da ponte para confraternizar com
dúzia de igarapelaguenses ao derredor de uns copos de cana. Fomos ao banho
enquanto eles ficavam espalhando alegria pelo entardecer. Quando estávamos
espremendo as roupas para voltar, no entanto, eis que se forma um enorme
pé-de-briga justo no meio da ponte, por onde teríamos que passar. E como os ânimos
não se acalmaram de uma hora para outra, ficamos um tempão de bubuia. Quando
chegamos ao encontro, a turma já estava impaciente.
Em Mazagão Velho, o “espetáculo”
teve a participação do famoso Conjunto Mucajá, banda bem regional liderada pelo
maestro [Osmundo] Barreto que animava tanto festas como ladainhas na pequena
vila. Todos esses encontros eram gravados e transformados num programa de rádio
de uma hora de duração, apresentado todos os sábados pela Rádio Educadora São
José. Foi quando o amapaense começou a tomar conhecimento das jazidas culturais
espalhadas pela hinterlândia do antigo Território.
O
Marabaixo e os padres
Foi a partir daí que Fernando Canto
pegou embalagem e incrementou o que pode o seu lado cultural. Ajudou a criar o
Grupo Pilão, o primeiro a aproveitar as riquezas folclóricas da região, e se
danou a escrever livros de versos e de histórias do Amapá, num trabalho
paralelo ao do compositor de inúmeras músicas que viraram clássicos do
amapaensismo, entre elas Pedra Negra, Joana Joá e Quando o Pau Quebrar.
Igreja São José |
Fernando prepara-se agora para lançar “Água Benta e
o Diabo”, onde fala da saga do Marabaixo em Macapá e da resistência dos
populares em preservá-lo, apesar das dificuldades. “De um lado, a Igreja
promovendo a sua dominância e de outro, os negros com sua irreverência e
determinação para que a festa do Divino não se extinguisse”. O livro e o título
foram inspirados numa declaração de Dom Aristides Piróvano ao Fernando no
decorrer de uma entrevista para jornal: “Folclore é folclore, religião é coisa
séria e não podemos misturar as duas coisas. A igreja não é contrária à
diversão do povo, mas não se pode misturar água benta com o diabo”.
Para escrever “Água Benta e o Diabo”, Fernando
recorreu a antigas anotações e encontrou, no meio de pedaços do jornalismo de
antigamente, um artigo assinado por Pancrácio Junior, publicado em 31 de maio
de 1899 no jornal “Pinsonia”. Nele vê um relato detalhado da festa do Divino
Espírito Santo – à qual era vinculado o Marabaixo – e uma enxurrada de críticas
ao vigário da Catedral de São José, que não queria ver a liturgia do padroeiro
ser embolada à profanação do folclore cultuado pela negrada.
Desenho de Ronaldo Bandeira
para a 2ª edição do
livro
Água Benta e o Diabo.
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O livro traz ainda depoimentos de macapaenses
tradicionais, como o de Zacarias Leite, nascido em 1903, e que foi aluno do
padre Julio Maria Lombaerd, um belga que chegou a Macapá em 1913. O que
Zacarias Leite conta dá bem a dimensão do desentendimento: “Padre Julio
combatia as festas do Marabaixo. Dizia que não passava de batuque e bebedeira,
com a exploração de dinheiro, mediante a apresentação da coroa do Divino
Espírito Santo. Padre Julio fechava a igreja, mas o povo fincava os mastros na
frente da matriz. Era tradicional em Macapá deixar-se essa coroa do Divino na
Igreja de São José, de um dia para o outro. O padre Julio não aceitava esse
costume. Combatia-o publicamente. Um ano, na igreja, quebrou a coroa de prata
do Divino e mandou entregar os pedaços ao festeiro do Marabaixo”.
Fernando revela que as relações entre a Igreja e o
Marabaixo se acalmaram um pouco com a criação do Território e a chegada de
Janary Nunes para governá-lo. “Para a execução dos seus objetivos, Janary
adotou o processo de entendimento e cordialidade para com os moradores mais
velhos, chefes patriarcais de famílias tradicionais e líderes de festas
religiosas e populares”. Evidentemente que nesse esquema entrava a turma do
Marabaixo.
Caldo
cultural ainda não ferveu
Mas no fim da década de 40, com a chegada dos padres
do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras, o Marabaixo voltou a ser combatido
com os mesmo argumentos usados pelo antigo pároco de São José. Martinho Ramos,
filho do mestre Julião Ramos símbolo dessa festa, contou ao Fernando como foi:
“Até 1948 tudo ia bem. Mas depois eu os padres chegaram aqui entenderam que o
Marabaixo era macumba. Aí houve uma grande queda, mas Julião aguentou...”
O livro é muito importante para quem estuda cultura
popular. E saborosa para quem aprecia o gosto da literatura amazônica. Sem
dúvida representa uma ajuda das mais expressivas a essa trabalheira que alguns
estão tendo de contar as coisas interessantes que por aqui aconteceram.
Semana passada, sem rumo nem picolé, atualizamos o
papo. Fernando passou algum tempo na Universidade Federal do Pará e atualmente
trabalha na Fundação Estadual de Cultura, o lugar certo pra ele. Vou tentar
reproduzir pra vocês o que me disse nessa conversa.
“Creio que devido aos sucessivos impactos
sócio-políticos ao longo de sua existência, o Amapá, notadamente Macapá, sofreu
um processo de caldeamento cultural que ainda não ferveu porque não está bem
temperado. O fogo existe. E há muita lenha. Mas o tempero é a identidade
cultural que falta definir no que se caracteriza nosso povo. E agora que há uma
boa luz se espalhando pelo céu do equador, além de toda essa liberdade política
que vivemos, também há liberdade de criação. Aliás, cria-se muito, mas
infelizmente muita coisa sem qualidade é exposta aos nossos olhos. De que
adianta, então, termos um movimento cultural nativista se ele é quase xenófobo?
Tem muita porcaria sendo produzida por conta da falta de coerência política e
por excesso de vaidades individuais. No fundo (e na superfície) falta algo que
tenha a nossa cara. Mas eu parto do princípio que temos substância ideológica e
coragem para mudar as coisas, para adequá-las à nossa realidade cultural. Temos
pessoas preparadas, temos memória. Porém, temos que lutar para preservar e
desenvolver nossa tribo. Só desse jeito é que poderemos entender e construir
nossa identidade, e assim teremos armas para lutar contra os ataques perniciosos
da globalização, principalmente aquela comandada dissimuladamente pelos grandes
grupos detentores do poder. Não, não é paranoia, não! É a minha manifestação
ancestral de ‘desconfiança’, estereotipada do índio amazônico”.
(*)
Publicado no Jornal do Dia. Macapá, 15 de junho de 1997.
A tensao divino/mundano eh universal. Acabei de assistir a um documentario onde voce se surpreende ao ver a oposicao religiosa que se deu a musica de Elvis Presley nos USA. E eh sempre algo fluido, nao seria surpresa se as mesmas pessoas que participavam do marabaixo eram tambem paroquianos (e vice-versa e vai e volta). (Nila)
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