Prof. Dr. Yurgel Caldas
(*)
No “Ensaio sobre a poesia épica”, o
escritor paraense Carlos Alberto Nunes insere a presença definitiva das
Amazonas como “a mais fascinante das lendas da nossa terra, surgida antes mesmo
do início da colonização portuguesa, e de tal força configurada, que deu nome
ao rio de cinge ao norte do território brasileiro” (NUNES, 1962, p.18). O ensaio
de Nunes introduz seu poema épico, intitulado Os Brasileidas, que tem como subtítulo a expressão quase eufemística
de “epopeia nacional”, cujo assunto gira em torno da rota percorrida pelos
bandeirantes liderados por Antonio Raposo Tavares, que buscava alcançar as
lendas amazônicas, tanto a do Eldorado quanto das mulheres guerreiras daquela
região.
Antes de defender a tese do caráter
sócio-familiar da lenda das Amazonas – presente na literatura universal, desde
as narrativas gregas até o Romantismo Alemão -, Carlos Alberto Nunes contesta
as críticas historicistas que prevalecem sobre a natureza fantástica das
mulheres guerreiras, como elemento de criação ficcional: “que valor poderá ter
a demonstração por a + b da não existência histórica das
mulheres guerreiras se o nome do rio é a melhor prova do contrário?” (idem, p.19). Para Nunes, a “realidade
lendária da Amazonas está assegurada pela crença multissecular da existência de
um reino de mulheres guerreiras, desaparecido, mais do que na voragem das águas,
que na da história, que o nome do grande rio preservou para a posteridade” (id. Ibd.).
Segundo o autor de Os Brasileidas – para quem os
acontecimentos de base lendária ou mitológica forçam uma mudança de rumo
cronológico na narrativa épica (idem, p.16) -, a carência de provas históricas
pode ser compensada pela memória da tradição oral, o que determina uma espécie
de “verdade” para a lenda amazônica. No sentido universalista do termo, as
“Amazonas aparecem na origem de todos os povos e sempre como reação contra a
opressão exercida pelos homens sobre as mulheres” (idem, p.21) – realidade eu pode ser lida como contraponto à lenda
do Jurupari, figura divina que nasce, filho de mãe virgem, para restituir a
autoridade masculina ante um mundo comandado por mulheres. Criando novas leis,
como as de fidelidade conjugal e castidade para as mulheres, Jurupari passa a
ser também “o legislador da mitologia indígena” (ROQUE, 1968, p.962, apud WILLIAMS, 1976, p. 106),
tornando-se, segundo sugestão de Nunes, uma “representação simbólica da vitória
do direito paterno, ou dos novos deuses sobre as divindades ctônicas das
populações primitivas” (NUNES, 1962, p. 22).
Assim, o ensaio de Nunes aponta para
o reforço de uma tradição imaginária iniciada pelos primeiros viajantes-cronistas,
que viram e narraram, maravilhados e amedrontados, num misto de documento
informativo e ficção, o espaço do Novo Mundo que por muitas vezes lembrava um
território primitivo, fora do tempo histórico, cheio de promessas de riqueza e
poder.
Ao considerar a lenda das mulheres
Amazonas como fundamental para a criação ficcional, não só da Amazônica, mas
também de todo Brasil, como Carlos Alberto Nunes abre espaço para a construção
do bandeirante Antonio Raposo Tavares como o heroi de seu poema, aliás, “o tipo
acabado de heroi da epopeia” (Idem,
p. 28), além de inserir a narrativa mitológica da Atlântida na estrutura de Os Brasileidas, sugerindo que as Amazonas
seriam “sobreviventes do continente submergido” (idem, p. 30). Para reforçar tal ideia, Nunes busca apoio nos
cronistas europeus, como o padre Simão
de Vasconcelos, que escreve: “O que suposto [...] há de se dizer que os
progenitores dos índios da América [...]entraram a povoá-lo sucessivamente com
os que entraram a povoar a Ilha de Atlante; pois tudo era a mesma terra, mais
ou menos distantes das colunas de Hércules” (Apud NUNES, 1962, P. 30).
Excetuando-se a visão meramente
mitológica que Nunes desenvolve em ensaio e, naturalmente, em sua épica, vale a
pena destacar a tradição conciliadora como base constitutiva do herói de Os Brasileidas, conforme vimos em Gomes
Freire de Andrada (O Uraguay), Diogo
Álvares Correia (Caramuru) e nos “herois”
portugueses de Muhuraida. Assim,
Raposo Tavares é marcado como “heroi” no contexto civilizador do século XVIII,
o qual – tal como vimos nos herois da épica brasileira colonial – fundamenta-se
na piedade como traço marcante de seu caráter. Dessa maneira, também inspirado
no Enéias Virgiliano, o valoroso constitui-se como grande heroi civilizador
(“alma nobre”) do Brasil colonial, devendo ilitar: primar-se antes pelo
discurso diplomático que pela força militar: “Desta arte o bandeirante [...]/
em sua alma nobre o impulso/ primitivo da cólera consegue/ dominar e, mais
calmo e comedido, / como um deus que as paixões domado houvesse”
(NUNES, 1962, p. 67). Esse heroi pacificador se insere, assim, definitivamente
na linha de tradição do heroi da épica brasileira do XVIII.
Se a “alma nobre” de Raposo Tavares
é cantada em versos no poema de Carlos Alberto Nunes, ela já fora defendida na
obra sociológica Populações meridionais
do Brasil, de Oliveira Viana (Cf. SANTIAGO [cood], 2002, vol. 1, p.
923-1188), que tem como um de seus pontos principais a constituição do colonial
como fruto de uma evolução eugênica.
Assim, os primitivos colonizadores
lusos, de quem [os chefes bandeirantes] descendem, representam a porção mais
eugênica da massa peninsular; porque só emigram os caracteres fortes, ricos de
coragem, imaginação e vontade. Na sua espantosa energia e fortaleza moral, os
caudilhos bandeirantes revelam quão poderosas foram essas reservas de eugenismo
acumuladas nos primeiros séculos. [...] Como na Idade Média, a seleção se faz
[...] pela bravura, pelo valor – pela virtude, no sentido romano da expressão (Idem, p. 983-4).
Força, coragem, moral e inteligência
superiores formariam, portanto, o caráter do bandeirante como o “tipo acabado”
do heroi colonial brasileiro, descendente direto da fina flor cavalheiresca,
garantindo a sua “nobreza d’alma”, tantas vezes repetida n’Os Brasileidas, em referência direta a
Raposo Tavares. A raça dos herois bandeirantes, depurada com o passar do tempo,
passaria a ser, na perspectiva determinista de Oliveira Viana e na poética
mitológica de Carlos Alberto Nunes, a máxima expressão do heroísmo europeu
civilizador sobre a selvageria do homem e do espaço americanos.
Como consequência desse pensamento,
surgem as graduações de raças e sub-raças, no Brasil colonial. Dessa forma, o
mulato “inferior” – cruzamento do brando com o negro “inferior”, degradado e
incapaz de qualquer espécie de ascensão – estaria distante de formar parte das
expedições bandeirantes. Diferente seria a condição do mulato “superior”: arianos
pelo caráter e pela inteligência ou, pelo menos, suscetíveis de brancos na
organização do país. [...] Produtos diretos do cruzamento de brancos e negros,
herdam, vezes, todos os caracteres psíquicos e, mesmo, somático da raça nobre. Do matiz dos cabelos à
coloração da pele, da moralidade dos sentimentos ao vigor da inteligência, são
de uma aparência perfeitamente ariana (Idem,
p. 1007[grifo nosso]).
Nem mesmo a crítica irônica de
Alcântara Machado, em Vida e morte dos
bandeirantes (Idem, p. 1189-1368),
seria capaz de empanar a imagem vencedora e bravia desse sujeito, estabelecida
a partir do século XVIII. Alcântara Machado encerra seu livro com a narração de
um “gesto mesquinho”, atribuído a Antonio Raposo Tavares, fato impensável nas
citadas obras de Oliveira Viana e Carlos Alberto Nunes: “Dos capitães só um
reclama a paga de seu trabalho: Antonio Raposo Tavares. Da pobreza que fica por
morte de Pascal Neto [bandeirantes falecido nos sertões], o heroico devastador
das missões [jesuíticas] retira um par de meias” (Idem, p. 1358). Para a História brasileira, contudo, seria
considerado de fato o legado legal, heroico e civilizador do “soldado civil”
(bandeirantes), que foi desenvolvido pelas épicas nacional do século XVIII,
representada pelas obras de Basílio da Gama, Santa Rita Durão e Henrique João
Wilkens.
(*) Professor de Literatura na UNIFAP
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