Crônica de Fernando
Canto
O medo de fazer algo errado e ser
punido controlava a ação de qualquer moleque da minha idade.
Os mais
velhos comentavam com veemência sobre uma tal Ilha de Cutijuba, no Pará, para
onde levavam os jovens transgressores das leis, falando misérias sobre ela.
Diziam ser um presídio de onde era impossível fugir por causa dos tubarões e
pirararas que viviam ao seu redor, perto do oceano; um lugar quase inacessível,
que para viver era preciso lavrar a terra na chuva e no sol para produzir seu
próprio alimento; uma prisão ao ar livre na qual poucos sobrevivam cumprindo
suas penas. Em suma: um inferno.
O controle
social bem articulado, posto nas nossas cabeças pelo medo, povoava nossas vidas
desde a infância. Para cada situação sempre existia uma história que evitava o
fazer errado. Era a educação pelo medo.
Até hoje quando vejo uma sandália virada providencio logo que ela fique na
posição de calçar, pois me ensinaram a acreditar na superstição de que minha
mãe morreria se a sandália não estivesse de cabeça para cima. Espertos esses
adultos! Eles inventaram uma forma de fazer as crianças não bagunçarem os
espaços da casa e também de não castigá-las com surras e outra correções
violentas. Certa vez um dos meus filhos, ainda criança, viu o irmão chutar uma
sandália que ficou de cabeça para baixo num canto da sala. Imediatamente ele
disse: - A mamãe vai morrer, eu não tô nem aí, eu não tô nem aí! E saiu se
isentando da culpa da (im)provável “morte” de sua mãe, causada pela sandália
virada.
Situações
como essa aprendemos em todos os lugares, seja em casa, na rua ou na escola,
onde nossas relações sociais se ampliam e solidificam. E assim a gente vai se
educando, variando os conhecimentos, resistindo ou não às novidades, segundo os
contextos históricos, sociais, culturais e políticos que se apresentam. Mas
dificilmente essas superstições e abusões sairão de nossas memórias, embora
entendê-las, hoje, signifique dar boas risadas, porque todas as representações
simbólicas produzidas pela consciência coletiva ou individual expressam visões
de mundo e de sociedade. É uma visão política de realidade porque as ideologias
estão ligadas à compreensão da cultura, que por sua vez é uma percepção ligada
às diferenças entre os homens. O controle implícito no gesto de “ajeitar” a
sandália é uma experiência de poder.
Bem próximo,
na continuação da educação pelo medo, lembro da expressão “- O Navio dos
Cabeludos vem te buscar.”, uma forma de coação social e familiar para os que
não gostavam de cortar os cabelos, principalmente no tempo da Jovem Guarda,
quando era moda usar os cabelos compridos, mesmo se arriscando a ser chamado de
“bicha”. Não sei de onde veio a dita expressão, mas desde a Guerra do Paraguai,
passando pela Revolução dos Cabanos e pela Segunda Guerra Mundial, muitos
jovens se escondiam no mato com medo dos “Pega-pega”, navios que passavam nos
rios da Amazônia para alistá-los compulsoriamente e remetê-los aos campos de
batalha.
A invenção
dessa “pedagogia” não raro ainda se estabelece em muitos lares urbanos e rurais
da Amazônia. E funciona com as crianças, porque todas têm medo. Nenhuma delas
quer perder a mãe por causa da sandália virada. Ninguém quer viajar a força num
desses Navios dos Cabeludos que sempre aparecem na frente da cidade para uma
viagem sem destino e sem volta.
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