Minha mãe, Saúde Pimentel Canto em tela de Olivar Cunha. |
Republico, a pedidos, o texto abaixo.
Minha homenagem a todas as mães que passaram por este planeta e cumpriram a sua
sagrada missão social e biológica. Às que permanecem, a minha incessante admiração
e carinho.
CANÇÃO DO
FILHO AGRADECIDO (*)
Crônica
de Fernando Canto
Minha mãe está ali, do
outro lado da rua ao lado de minha irmã, me olhando. Mas eu não posso
atravessar porque muitos veículos passam constantemente em alta velocidade. A
alegria de reencontrá-las é grande e o coração palpita na possibilidade de
abraçá-las, afinal faz tempo que eu não as vejo. Elas estão lá e esboçam
sorrisos de ternura, como que convidando para uma conversa longa ao redor da
mesa onde um café fumegante feito em casa, saindo do coador, explode em seu
odor característico. Os carros não param. Não há semáforos nesse cruzamento.
Elas percebem meu desespero e espalmam as mãos pedindo calma, porque é perigosa
a travessia e eu devo esperar o movimento dos veículos para poder passar. Fico
agoniado e não tiro os olhos delas. Mas os carros dão lugar à manadas de
animais em estouro, e quando a poeira passa, um trem se segue em seu lugar. É
grande o movimento. E agora uma chuva fina molha os caminhões em comboio veloz
no meio da rua, ensopando o som de suas buzinas barulhentas. Do outro lado da
rua duas figuras diáfanas desaparecem progressivamente, indiferentes ao meu
chamado, enquanto os obstáculos móveis pouco a pouco somem da minha vista.
Então eu acordo com os
batimentos cardíacos fora do normal e uma imensa saudade rompe abruptamente os
globos dos meus olhos embotados, formando milhares de gotículas cristalizadas
no chão. É um dia de sol e chuva, mas de luz intensa varando os vapores no céu
azul equatorial.
Sobra um espanto
materializado na parede do quarto. Fecham-se as cortinas...
Restou-me a sensação do
nada, um vazio cheio de alguma coisa, o sentido da ausência, não da falta, pois
“não há falta na ausência”, diria Drummond inventando exclamações alegres por
aí. Ficou ainda a lembrança das criaturas que desafiaram a vida e puseram
filhos no mundo, predispostas que estavam a romper círculos enfadonhos e
mesmices tentaculares que enredam a normalidade do ciclo vital.
E no interlúdio do sonho e
da memória, do nascimento e da morte, do dia e da noite, uma canção renova-se
mergulhada na saudade da planta e da flor. Uma canção encarna a melodia
magnificamente soprada pelas ruas, onde só a escuta quem tem o ouvido treinado
para ouvir sob o barulho dos carros da cidade. Dentro dessa canção se pronuncia
o amor, palavra-escritura indecifrável para alguns ou guardada nos bolsos de
outros. É uma canção que se inscreve em mosaicos, que venta e fustiga
esconderijos de metal e é tecida com agulhas de ouro. Quem assobiá-la será
feliz e descansará em macias almofadas de seda do oriente, recheadas de penas
de ganso.
Por garantir essa promessa
é que me alardeio proprietário de palavras inventadas, de músicas compostas em
nome do amor e da memória. Eu narro essa façanha improvisada de fazer-me
condutor do lume da saudade, a fim de vê-lo sempre aceso dentro do coração.
Inominada rutilância és
tu, Mãe. Anjo astral, iluminadora. Grato eu sou pela concessão da espada nesta
onírica epopéia inacabada em que me encontro e venço diariamente. Agradecido
fico pelo indisfarçado crescimento das abelhas que colhem o pólen das
hortênsias, dos jasmins e das papoulas que ainda florescem em teu jardim. Aqui
teu filho lavra a terra, planta e separa o trigo onde lhe salpicam o joio. Aqui
teu filho ainda pule a pedra bruta posta ao meio do caminho. Aqui ele canta a
canção que lhe ensinaste para limpar os obstáculos e carregar os fardos
inevitáveis que surgem nas ruas por onde passa.
Inefável rutilância tu és,
Mãe. Fulcro lírico, bálsamo dos dias funestos, porto necessário ao barco sem
destino. Grato eu sou pelos rios que atravesso nas pontes que me ensinaste a
desenhar e transpor. Agradecido fico pelas metáforas da vida que Deus mandou-me
e que eu, por ti, pude interpretar. (Fernando Canto)
(*) Publicado no livro “Adoradores do Sol –
Novo Textuário do Meio do Mundo”, de Fernando Canto. Scortecci, São Paulo,
2010.
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