O lado
humorista do escritor amapaense Ray Cunha pode ser visto neste conto sádico,
onde as personagens viajam direto para a casa do diabo. Fantástico (F.C.) Ray
Cunha é escritor e jornalista. Reside atualmente em Brasília.
VILA BELZEBU (*)
Conto de
Ray Cunha
Até que
o ônibus não estava muito lotado. Pipira conseguiu se apoiar na muleta de um
saci Pererê. O motorista ia correndo um bocado quando Mutreta deu o sinal e
freou bruscamente. Uma anta veio voando lá detrás e deu uma chifrada num bebê
que só estava chupando o dedo. O bebê começou a chorar e pegou uma bofetada.
- Cala a
boca, assassino! – disse-lhe a mãe dele, repreendendo-o severamente.
Como o
ônibus já estava muito lotado, o casal que ia saltar jogou os três garotinhos,
seus filhos, pela janela. Um deles caiu de mau jeito e já ia para baixo das
rodas de uma escavadeira Caterpilar quando um soldado da PM o puxou pelas
pernas, tornando-se um heroi.
Um
pretão de três metros quis tirar um sarro com uma anã e foi atingido com um
golpe baixo. Um sujeito com mania de cavalo ia relinchando, mas foi posto para
fora com um pontapé na parte esquerda do beiço inferior. O motorista estava com
muito ódio de um sujeito que puxou a caneta para anotar a placa do carro, a fim
de “posteriormente”, conforme explicou para um vizinho, “queixar-se nos ditames
da lei no departamento cabível”.
- Tu és
um sem vergonha, seu cretino desavergonhado e purulento. Não sei onde estou que
não paro este ônibus, boto todo mundo pra fora e pronto. Ainda te dou uma surra
só com meu par de meias, cujo fedor nem hiena aguenta.
O
sujeito que puxou a caneta estava visivelmente com medo da barbaridade do
motorista.
- Basta
a gente olhar para a tua cara, cabra safado, para se ver que a vergonha em ti
já foi lambida. Tu estás pensado que é só puxar uma caneta e anotar a chapa, é?
- Vê se
tu paras na tua casa; quero conversar com tua mãe! – gritou alguém lá do meio
do coletivo.
- Se
esse insulto partisse de ti, sujeitinho descarado – disse o motorista para o
incauto escrevinhador, - eu te poria os dedos dos pés nessa tua cara insossa.
Tu herdaste essa cretinice da tua mãe?
O outro,
acovardado e humilhado, pediu pra saltar, mas num gesto inesperado de heroísmo,
fincou a caneta no alto da cabeça do motorista. Ao ver o sangue, o chofer
começou ter vertigens, até que apareceu uma gueixa com um leque do tamanho de
um guarda-sol e começou a abanar o gajo. Ele se recompôs e zarpou.
Nessas
alturas começou a trovejar e caiu um baita aguaceiro, que logo encharcou a
Margarida. Ela fechou mais que rapidamente a janela, mas quando viu a janela
foi aberta de novo. Ela tornou a fechá-la, mas novamente a janela foi aberta.
Então Margarida olhou para trás e viu um sujeito com dois fundos de garrafa na
cara abrindo a janela da moça.
-
Primeiro vou te arrancar dos olhos esses dois telescópios, depois quebro eles e
te corto os dedos mindinhos. A seguir, tiro meus sapatos altos e te dou com o
salto de ferro só nos lóbulos das orelhas e no osso do nariz.
O rapaz,
todo ensanguentado, explicou que não enxergava direito a janela, que só tinha
uma das vidraças.
- Meu
Deus! Massacrei um intelectual por causa da janela deste ônibus – lamentou
Margarida.
Foi
nessa hora que jogaram uma pedra no olho do motorista. Ele perdeu a direção do
carro e o ônibus brecou certo no fim da linha, onde Belzebu já os esperava de
garfo em punho.
(*) Publicado no jornal
Inteligentsia. Brasília, setembro de 1994.
Fernando, escrevi esse conto em 1987, para o antigo jornal Correio do Brasil, de Brasília. Obrigado pela lembrança!
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