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Em maio vai fazer cinco anos que o
Mestre Pavão nos deixou. Reproduzo esta crônica que escrevi sobre ele, com uma
grande saudade no coração.
O ÚLTIMO VOO
DO PAVÃO *
O homem do Marabaixo partiu para
encontrar-se com seus ancestrais, os mesmos que lhe ensinaram a tocar tão bem a
caixa, o tambor que anunciava bons augúrios nas tardes do Laguinho.
Com ele Pavão comunicava a seus pares, os agentes populares do sagrado,
que a festa do Divino e da Santíssima Trindade já tinha início. E todo um
ritual deveria ser obedecido, desde o Domingo da Aleluia, passando pelos
preparativos da seleção dos mastros nas matas do Curiaú, até a sua derrubada e
escolha dos próximos festeiros no Domingo do Senhor. Com ele se foi um
arcabouço cultural de grande valia para a memória do nosso patrimônio
imaterial. Foi-se também a sabedoria dos que fazem acontecer as manifestações
mais legítimas do povo. E restou apenas o espanto dos que ficaram.
Doente, não mais participava ativamente dos eventos do Marabaixo como
nos velhos tempos, mas sempre dava um jeito de ir em sua cadeira de rodas aos
mais importantes, para ouvir o rufar das caixas
e ver as saias da negras velhas rodarem sob o ritmo intenso oriundo de
além-mar.
Pavão levava muito a sério o que
fazia no Marabaixo. Até brigava por ele. Seu amor pelo folclore certamente foi
herdado do avô Julião Ramos, o grande líder negro, que na época da implantação
do Território Federal do Amapá disseminou o ritmo e a dança para todo o Brasil.
No domingo, véspera da sua morte, sua filha Ana perguntou-lhe se ia ao
Marabaixo do Dia das Mães na casa da Naíra – uma das festeiras deste ano no bairro
do Laguinho. Ele disse que não ia porque estava indisposto, mas mandou todo o
pessoal de sua casa para lá, pedindo que não deixassem a ”cultura morrer”. Mal
sabiam todos de sua casa que a cultura do Marabaixo, nele impregnada, estava
morrendo um pouquinho com ele.
Justo que consideramos a memória
como o deciframento do que somos à luz do que não somos mais, a morte é o
abismo que tudo leva e engole inclusive o segredo da identidade, aquilo que nos
pertence social e culturalmente. Posto isto, quantas conversas não foram
abruptamente cortadas numa gravação para um trabalho de conclusão de curso
dessas tantas faculdades da capital? Assim sendo, o que restou de seus
depoimentos, desse depósito memorial tão importante para que se analise o
Marabaixo? Ora, sabe lá quantos pesquisadores egoístas guardam suas fitas
encarunchadas e vídeos empoeirados que nunca vão se abrir para ninguém?
Mestre Pavão a todos respondia com a
maior paciência, paciência esta que aprendeu a ter com a doença intratável que
lhe fez perder uma perna. Mestre Pavão dava a todos o seu conhecimento vívido e
vivido intensamente em setenta e dois anos de repetição ritualística que a sua
memória avivava e exprimia no vai-e-vem dos olhos.
Aqui peço licença poética ao
escritor moçambicano Mia Couto que escreveu o “Último Voo do Flamingo”, para
parafraseá-lo, dizendo que o nosso pavão alçou seu último voo na tarde amena de
maio. Um voo curto, é certo, porque pavões não voam quase nada, mas são aves do
paraíso por excelência.
Sua luxuriante plumagem em profusão de dourados, verdes e azuis à luz
do sol reflete uma miríade de cores, onde o vermelho e o branco parecem estar
presentes como se preparando para um desfile da Universidade de Samba Boêmios
do Laguinho, a escola do coração do mestre. Convém lembrar aqui que o
simbolismo do pavão carrega as qualidades de incorruptibilidade, imortalidade,
beleza e glória, que por sua vez se baseia em outro aspecto além destes: a ave
é predadora natural da serpente, e em certas partes do mundo, mesmo seu aspecto
maravilhoso é creditado ao fato da ave transmutar espontaneamente os venenos
que absorve do réptil. Este simbolismo de triunfo sobre a morte e capacidade de
regeneração, liga ainda o animal ao elemento fogo.
Fogo, sim, do Marabaixo quente, do “Caldeirão
do Pavão” com seu caldo revitalizador do carnaval que tanto o mestre amava e
por isso se enfeitava nos áureos tempos dos desfiles da FAB. Vai em paz, Pavão,
tua plumagem tem cem olhos para vigiar o que deixaste entre nós.
*Publicado originalmente em A Gazeta (maio de 2009) e
depois no livro Adoradores do Sol, de minha autoria (Scortecci, São Paulo,
2010.)
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