sábado, 14 de setembro de 2013

URDIDURA (ENIGMA AMAPÁ)



Para Alba Carvalho, com carinho, nesta aventura epistemológica no meio do mundo, este estudo de sociopoesia reflexiva.

            I

Des/vendar tua terra, teus sonhos, Amapá
Des/vendar teus olhos, teus textos não escritos
Des/velar tua alma circunscrita sobre um rio de prantos
Que se espraia para a foz e lava sortilégios no oceano

            II
Na terra o sol repuxa a sombra do arquipélago
E explode sobre o manto da tua dimensão aquática
Em festa de bailados sem fim

            III
O teu estado é o de ausente nas necessidades, Amapá
Essas que emergem quando o tempo lento das tuas tardes
Flanam no teu dorso como a vida descaindo à chuva nos barrancos
E re/velam teus segredos:
A construção de pedra ainda esmaecida na paisagem
E o ofício de viver uma inócua pedagogia da espera

            IV
Desgarrar das guelras, relatar os mistérios das entranhas
Desfibrar as teias, manusear teares
Para fabricar tecidos de ouro e aço e de cores rutilantes
Como as mãos habilidosas de Penélope
Até a volta do heroi na hora exata

            V
Quando és só tu és nada, Amapá
Nada te adianta se ao calor não refrigeres
E se ao frio não acenderes a teus filhos                                                                 
O fogo do amor e da paixão que de ti tantos esperam

            VI
Quando és só equinócio, Amapá
Parece não temeres
O jogo equidistante dos solstícios
Nem a força das vozes nos quadrantes
Onde estão os mitos, a fé e os gritos
Vindos lá do fundo da floresta
Em busca de respostas que as saciem

            VII
Só verás pulsar em ti a substância
Quando a enigmática estrutura do teu corpo
Abrir-se ao vento e à mansidão da tessitura
Espelhada ao sol do equador

            VIII
Tu só sentirás a ruptura
Ao ouvir a voz gestante das ciências
E o anseio ainda latente no clamor de homens e mulheres
Sem os receios dos silêncios obscuros
Sem o medo de arder velhas memórias
Sem a escória a deformar os teus caminhos
E os passos do teu povo em agonia

            IX
Terás, assim, a urdidura do algodão e da lã
Por aqueles que te tocam com ternura
Do meio-dia à meia-noite em tempo de contrários
Até que as sombras sejam luzes transparentes
Para que surjas radiante após a cerração

            X
Mas dobrarás, decerto, as pontas da Rosa dos Ventos
Para o coração, num círculo de luz:
Um gesto a agradecer eternamente

            XI
Verás, então, que desvendar-se é por o lume sobre a mente
É libertar-se já do que te oprime
É trazer o mar de volta para os Andes
É revolver a vida em ondas inquietas
De um novo rio que surge para sempre

 
Texto de Fernando Canto
Macapá, Campus Marco Zero do Equador, 09 de julho de 2013

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

CAMALEÕES URBANOS


Fernando Canto
Sociólogo

         Por morar próximo a mata da Infraero minha casa vive cheia de passarinhos e abelhas em busca de alimento e água. Vez por outra uns sapos dão as caras. Mas um dia desses apareceu um camaleão que ficou hospedado mais de três dias entre o jardim e um açaizeiro, vindo, talvez, por um terreno baldio atrás do meu quintal.
        O bicho parecia um dinossauro saído de um filme de Spilberg, com seu andar imponente. De repente corria rápido, fugindo ao olhar curioso dos habitantes da casa. Ficou dias no alto do açaizeiro, contemplado até pelas visitas que o admiravam sem incomodá-lo, ali, impressionantemente imóvel, olhando o tempo, aventando uma possibilidade de fugir pelo muro alto ou talvez do faro esperto dos cachorros da rua. Ao meio do quarto dia sumiu. Mas não sei se sobreviveu, pois a sua cauda de cerca de um metro e meio estava com a ponta quebrada e assim mesmo ele reagia aos que chegavam muito próximo para lhe fotografar, abanando-a com violência para se defender.

        O interessante é que veio logo à memória um “ladrão” de Marabaixo muito cantado e antigo, cujos versos dizem:

“Eu vim neste Marabaixo
             Você não me dá alimento

Eu não sou camaleão
            Que enche o papo de vento”

        A estrofe do cantador-compositor mostra logo o seu protesto contra o festeiro de alguma comunidade distante da sua, que deve ter lhe oferecido comida, bebida e todas as mordomias da festa para que ele fosse cantar, e não lhe deu o essencial na hora da fome, querendo dizer que vento não enche barriga.
        Mas quem é esse réptil que a televisão mostrou servindo de alimento a famílias flageladas na mais recente seca do Nordeste?  Quem é esse inofensivo animal, cujos ovos, chamados “ovas de camaleoa”, são tão apreciados na dieta alimentar de pessoas aqui na Amazônia? O Aurélio nos diz que se trata de um réptil lacertílio, da família dos iguanídeos. A maioria tem uma prega mento-faríngea capaz de se encher de vento, crista serrilhada no dorso, língua curta, grossa e não protrátil. É arborícola e muda de cor e também é conhecido por papa-vento, senembi, sinimbu, tijibu, etc. Por desconhecerem a sua importância para o equilíbrio ecológico das nossas florestas, caçam-no e lhes comem a carne impiedosamente. No sentido figurado é o indivíduo que assume o caráter conveniente aos seus interesses; o indivíduo que adapta sua opinião ao interesse do momento.

        E neste justo momento que vivemos um processo de transição política é que surgem, sem dúvida, bandos de camaleões políticos infiltrados nas diversas campanhas. Oportunistas, traíras (coitado do peixe!) e cães (“coitado do melhor amigo do homem”!) subservientes, sem terem nada a contribuir, a não ser com fofocas e intrigas, enchem o papo de vento para dar a impressão que tudo sabem. Entretanto querem mesmo é a atenção dos líderes políticos para poderem viabilizar seus interesses econômicos, políticos e até familiares, posto o exemplo das oligarquias decadentes do Amapá.

        Já vi esse filme. Certamente não se chamava “O Camaleão Invisível” nem era algum documentário ecológico sobre mimetismo. Era, talvez, a arte de grudar dissimuladamente em qualquer campanha política, cujos protagonistas estejam viajando na penumbra sem que disso saibam.

        Então, rendo aqui minha homenagem ao camaleão visitador do meu quintal pelo seu porte aparentemente grotesco; louvo a forma crassa em que ele veio ao mundo e pelo seu grau na escala evolutiva dos animais, que desconheço. Ora, eu não o admiro apenas pelo papel que exerce no meio da floresta. Eu o tenho na memória como um extraordinário ser que, imóvel, acompanhava o sol na sua trajetória todos os dias aqui entre os perigos da cidade, sem que soubesse que homens inescrupulosos roubam-lhe o nome e suas características naturais para se darem bem na vida.

POETA LUIZ JORGE FERREIRA


Eis aí um poema memorial do grande Luís Jorge Ferreira, exilado por vontade própria na selva de cimento de São Paulo há muitos anos. Ferreira se caracteriza por dar lubricidade ao lúdico de sua infância, por estender o que recorda a uma atualidade fulminante, o que enleva sua generosidade poética, dando a ela um halo autenticamente pessoal.

 
       APELO 1

 
       O charme de Zaide, era sair debaixo, sem haver terminado.

       Longe:- Zumbando o Marabaixo.

       Sem perder o charme,sem zunir,sem zombar,sem dar um gemido.

       Isto ela fez com o primeiro - Pai de Coló.

       Repetiu com o segundo - Pai de Ângela.

       Bisou com o terceiro - Pai de Bebeçudo.Com o pai de Álvaro, Angélica, Avulu, Fernando, Biló ,

       Zé Maria, Paulo Rodolfo, Cecílio, Quele, Padoca, Lele, e os que mudaram com ela para rua da Olaria.

       Ali colocou a lua em tigela de barro, e os gemidos e assovios, os pôs a secar.

       Os de ninar os dependurou na crista do vento, os de beber retirou suas línguas,

       e as esticou entre o Equador e o Trópico de Câncer.

       Os de chorar, amarrou suas lágrimas com Puraquês e os acendeu as vésperas de lua.

       Os de ir. Para eles, varreu a porta da casa com sopros e sussurros.

       Os porquês dos quereres e maldizeres, deixou no escuro da memória.

       Os de escrever poemas e os de se apaixonar,estes,ela fez sinal com as digitais

       sobre os olhos sempre ávidos e avulsos.

       Os de voltar, para eles, ela limpou um quarto escuro, sem limites entre o passado e o presente.

       Espalhou, Duendes,encontro banais,espanto, canções,perfumes e lembranças, situações cotidianas,

       frases levianas, psius e silêncios, botou de repentes e alguns ...te amo.

        Os de subir a Av. Ernestino Borges, para eles ela confundiu o Norte Magnético,com telas de tv,

       teclas de computador, e a cicatriz de várias pegadas sem rumo.

       Os que gastaram pouco o tempo, os prematuros, os imaturos e quase mudos, os que subiram a ladeira,

       com as mãos no bolso, os de terno escuro, os amantes do muro, os que sentavam no tronco ao lado da Igreja,

       os de queixa, os de pranto, os de reza, os de pressa, os de bulir com pica paus e percevejos, os do retrato, os escoteiros,

       os de cerveja, os do Pacoval, os do Araxá, os do Curral das Éguas, as mulheres éguas. Os de eu, e os que foram tu,

       e as que foram, e os que foram, e os que são...

 
       O charme de Zaide, era sair do poema, antes do término como um Inverno, largando chuva na vidraça,

       barulho nas telhas e pausa para mexer no quarto escuro, com os gatos de porcelana e as bailarinas de louça.

       Tudo isso na primeira estrofe.

       - Que é esta na qual estou vivo,

       Para os vivos, ela preparou um aviso.

       Para os vivos !

SEPARAÇÃO

Affonso Romano de Sant’Anna
 
Desmontar a casa
E o amor. Despregar
Os sentimentos
Das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
Após a tempestade das conversas.

O amor não resistiu às balas, pragas, flores
E corpos de intermeio

Empilhar livros, quadros,
Discos e remorsos.
Esperar o infernal
Juízo final do desamor.

Vizinhos se assustam de manhã
Ante os destroços junto à porta:
Pareciam se amar tanto!

Houve um tempo:
Uma casa de campo,
Fotos em Veneza,
Um tempo em que sorridente
O amor aglutinava festas e jantares.

Amou-se um certo modo de despir-se,
De pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
Modo de botar a mesa. Amou-se
Um certo modo de amar.

No entanto o amor bate em retirada
Com suas roupas amassadas, trocas de insultos
Malas desesperadas, soluços embargados.

Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?

No quarto dos filhos
Outra derrota à vista:
Bonecos e brinquedos pendem
Numa colagem de afetos natimortos.

O amor ruiu e tem pressa de ir embora
Envergonhado.

Erguerá outra casa o amor?
Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?

Tonto, perplexo, sem rumo
Um corpo sai porta afora
Com pedaços de passado na cabeça
E um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
Mais que uma mala de chumbo.


 

ADEMAR AMARAL – CONTISTA

Republico neste espaço o conto fantástico “A Ilha” do escritor obidense Ademar Amaral, cuja narrativa tem como lugar a cidade de Belém-Pa e adjacências. Ademar é romancista e publicou “Catalinas & Casarões”, um texto impressionante sobre a saga de sua família, embalada pela sua lúcida memória. Recentemente publicou “Sementes do Sol”, a história do cultivo da juta no Pará, primeiramente pelos japoneses e depois pelos caboclos amazônicos. É o resultado de uma longa pesquisa, aliada ao desenvolvimento ficcional que consagra o autor como um dos melhores romancistas atuais da Amazônia.

A ILHA
Ademar Amaral.
Noite chuvosa de um dia difícil de esquecer: 13 de dezembro de 1968. O mais que arbitrário Ato Institucional No. 5 acabara de ser publicado, e Belém vivia um período de alvoroço com o movimento estudantil. Os órgãos de repressão tinham fortes indícios de que a clandestina UAP-União Acadêmica Paraense programava grandes manifestações em vários pontos da cidade. Armadas até os dentes, as tropas patrulhavam as ruas como se fossem enfrentar uma guerra, atentas a tudo que pudesse denunciar algum início de agitação. Exército, Marinha, Aeronáutica e Polícia Militar estavam em alerta máxima, com especial cuidado nos lugares estratégicos onde os estudantes mais costumavam se materializar em grandes passeatas e aos gritos de “abaixo a ditadura!”. A atenção maior era para  a área codificada de “Triângulo das Bermudas”, com vértices fincados nas faculdades de Engenharia, Direito e Medicina, os focos das mais importantes lideranças acadêmicas.

Naquela mesma noite, no outro lado da cidade e sem nenhuma ligação política ou ideológica com os acontecimentos de Brasília, um fazendeiro chega à sua casa sem avisar, esgotado após longa e cansativa viagem pela Belém-Brasília. A bela mansão ficava no centro de um grande terreno, no ainda distante bairro do Souza. Apreensivo por não ter encontrado o segurança no lugar de costume, larga a caminhonete na rua deserta, desliga o alarme do portão e retira da sacola uma arma de possante calibre. Descalça as botas de vaqueiro para não fazer barulho e dirige-se ao quarto do casal, onde depara com uma cena jamais imaginada: sua linda e jovem esposa, emitindo gemidos, se contorcia na plenitude do gozo, com o próprio segurança da casa. Tomado de total descontrole, o marido não pensa duas vezes: mira certeiro e descarrega nos dois quase todo o pente de balas.

AMANTES MORREM ENGALFINHADOS, foi a destacada manchete do dia seguinte, na primeira página do mais importante periódico da capital.

Após vencer breve hesitação diante da cena sangrenta, o fazendeiro sai correndo, retoma a direção da caminhonete e larga em disparada pela cidade. Mas ao cantar os pneus na terceira esquina, ouve a sirene de uma das patrulhas da Polícia Militar, alertada por moradores atordoados pelos disparos na calada da noite. Começa, então, uma das mais espetaculares perseguições de carro pelos arredores e ruas da mangueirosa Santa Maria de Belém do Grão Pará. O instinto de sobrevivência do marido assassino era alcançar a Tito Franco (atual Almirante Barroso), para tentar fugir pela BR-316, no rumo do Maranhão, ou quebrar em Santa Maria, a porta de entrada da Belém-Brasília, onde poderia facilmente se acoitar na fazenda de um dos seus amigos de Paragominas. Teve que mudar de plano porque o rádio da polícia já comunicara um alerta geral em toda a cidade, só lhe restando a opção de pegar a Augusto Montenegro para sumir em alguma viela de Icoaraci ou, quem sabe, atravessar o furo e se embrenhar na mata densa do Outeiro. Achou que essa era a rota menos pior e resolveu arriscar.

- Era uma vadia!, Uma vadia! – gritou pra ninguém.

 O som estridente das sirenes e o ajuntamento de outros carros fizeram sacudir aquela noite, depois de um dia muito tenso e de notícias desencontradas de todo o país. A polícia vinha-que-vinha, e o homem a toda velocidade, na direção da Vila Sorriso. Quando atinge a esquina do antigo Clube Pinheirense, usou da única alternativa que lhe restava e dobrou abruptamente à esquerda. Acelera de volta a Belém, coberto pelo túnel arborizado de mangueiras, até desembocar na orla sinuosa da rodovia Arthur Bernardes. A caminhonete voa e se aproxima da entrada da Base Aérea, onde haviam montado uma barreira para detê-lo. Passou como um bólido pela guarda da aeronáutica, lançando à distância os cavaletes, mas teve o veículo atingido por três tiros sem nenhum dano sério que o fizesse parar ou mudar sua intenção de fuga. Atravessou o resto da Base Aérea, a vila naval e terminou confundindo por um tempo os perseguidores ao entrar pelas brenhas e passagens da Sacramenta. Segue em frente favorecido pelo carro traçado e quase capota ao fazer uma curva mais ousada na direção do porto. Entra na Castilho França, percebe outra barreira da polícia perto do mercado de ferro e decide cortar por uma das estreitas travessas da zona comercial. Sobe pela Campos Sales até a Manoel Barata e dobra novamente à esquerda para ganhar a Presidente Vargas, na expectativa de diminuir caminho para a São Jerônimo e chegar novamente na Tito Franco. Não havia nenhum outro plano que não fosse romper a barreira da Federal e alcançar Paragominas. Depois, como sempre, era conseguir um bom advogado e apostar na impunidade.

A chuva aumentava de modo assustador e isso reacendeu a esperança de despistar de vez a polícia, mas ele dá de cara com uma patrulha postada na esquina do Cine Palácio. Sem vacilar, dobra à esquerda e volta a acelerar com vontade, no estirão da grande avenida que dá acesso à escadinha do porto. Sitiado e num estado de estresse a mil, desmaiou com o pé fincado no acelerador, quando o carro pegou a rampa descendente ao lado da Receita Federal. Passa a mais de duzentos por hora rente à estátua de Pedro Teixeira, arrebenta a mureta da Doca e é arremessado com tudo para as águas barrentas da Baia do Guajará.

Acorda quando com o choque térmico da água lhe batendo nas canelas, mas o súbito despertar lhe injeta novo ânimo de continuar lutando pela vida. Tenta forçar o trinco da porta, mas este não cede devido à pressão externa que força a água penetrar com rapidez pelas frestas inferiores do carro. Aí, nesse momento, tem uma idéia que só vem de um ser humano em estado de total desespero: estoura o parabrisa com a última bala que sobrou no pente da sua arma. Mil pequenos estilhaços de vidro atingem seu corpo, mas, finalmente, ele encontra o vão que precisava para escapulir na escuridão gelada. A chuva virou um forte temporal, o bastante para impedir o facho da lanterna da polícia e para ele se deixar arrastar, de bubuia, na forte correnteza da maré vazante.

Naquela hora toda a cidade já sintonizava a Rádio Marajoara. Chamadas infalíveis do famoso repórter Paulo Ronaldo, “em edições sempre exclusivas e extraordinárias da Patrulha da Cidade”, davam alarde do acontecido. A mensagem era para que a população se mantivesse calma e em casa, porque a polícia caçava um perigoso comunista pelas ruas de Belém. Enquanto isso, o homem procurava se orientar na escuridão, mas era cada vez mais empurrado para fora do porto e impossibilitado de voltar. A canseira era tanta que estava quase a ponto de um novo e fatal desmaio, quando, milagrosamente, enxerga luzes de um barquinho peixeiro vindo em sua direção. Arrisca umas braçadas, o suficiente para segurar numa ponta de corda que havia se desprendido da embarcação e vinha de rasto à maneira de uma longa serpente das águas. A bendita seria sua salvação ou sua morte. Agarrou-se nela com mais fervor que um pagador de promessas do Círio, e foi sendo puxado. Diacho que ao  invés de atracar no emaranhado de mastros do Ver-o-Peso, o pequeno barco deu uma guinada de quarenta e cinco graus e penetrou num dos inúmeras furos do arquipélago que protege a frente de Belém.

A mão ardia e ele estava quase a ponto de desistir, não tivesse percebido a luz da lamparina que piscava acanhada, vinda de uma humilde barraca. Soltou-se e nadou até a vegetação que margeava o canal. Açodado, com o corpo dolorido e salpicado de ferimentos, conseguiu pisar em terra firme com extremo sacrifício, depois de quase ser tragado pela lama gulosa deixada pela maré. Tirou a camisa para enxugar as feridas e caminhou trôpego até próximo à barraca, onde se deitou para descansar sob a proteção de uma touceira de açaí. Próspero grileiro de terras, com mil capangas sempre à mão para qualquer serviço, ali era apenas um assassino fugidio feito animal acuado. Ele e aquela luz chamativa da lamparina, mais luminosa de esperança que as mil luzes que ele havia deixado para trás. O resto, era o estrondo infernal da chuva, a mata fechada e uma sufocante angústia a separá-lo de suas outras vidas. Imaginou que os da barraca haviam saído para pescar, ou fosse pousada de algum apanhador de açaí que tinha ido, com a família vender o produto no Ver-o-Peso.

Ficou um tempão encoberto pela vegetação, batido pelo açoite do vento e pelo frio do início da madrugada que começava lhe moer os ossos. Sem outra ideia melhor, com a voz capenga arriscou um desconfiado “oi de casa!”.

-Oi de casa! – tornou a falar.

Uma voz soturna responde do quarto e uma figura de mulher assoma à porta:

-Quem está aí ? Se é do bem pode chegar.

Ele surge molambento por detrás da toiça e caminha com cuidado.

-Aproxime, seu moço, o que lhe traz?

-Meu barco... o temporal me afundou ali na baía.

Afora a rede espaçosa, num dos cantos da pousada havia uma tosca mesinha com alguns santos de devoção, quase desaparecidos num emaranhado de fitas de promessas, um radinho de pilha ao lado da rede e a velha lamparina a querosene.

-Olhe, puxe aquele mocho, sente.

De aparência jovial, brincos baratos e cabelos sem trato caídos até a cintura, a mulher aproxima a lamparina e percebe os cortes sem conta provocados pelos cacos de vidro que voaram do parabrisa.

-Valha-me Deus! O senhor está sangrando... – e roçou os lábios carnudos enquanto seus olhos emitiam um misterioso brilho amarelado.

-Que foi? – perguntou o homem - tá sentindo alguma coisa? Tá de paquete?

-É o sangue, sabe, fico transtornada. Vá, deite na minha rede, é só o tempinho de preparar um chá.

Minutos depois o fugitivo toma o chá e logo cai em sono profundo. Acordou com o dia clareando e levou o maior susto ao abrir os olhos. A mulher estava quieta, sentada de cócoras e firme nele com aqueles olhos de intenso brilho amarelado. Fez esforço para levantar e as pernas ficaram presas, insensíveis como as de um paraplégico.

-Dormiu bem?

-E a senhora?

-Andei na mata, fui arranjar comida.

-Tem alguma coisa aí?

-Que nada, nem ao menos uma paca, tô quase uma semana no açaí com farinha.

Com passos felinos, ela buscou a lamparina pra ilharga da rede. A claridade, contra a roupa transparente, produziu o milagre de sobressair seu corpo bem talhado de prodigiosas pernas e ancas, contaminando a barraca com um perfume inebriante de flores silvestres.

-Então, foi o senhor?

-Eu? Que tem eu?

-O tal comunista que matou a mulher?

-Não sou comunista. Quem disse isso?

-Escutei na rádio, tão dizendo que o senhor morreu dentro da Baía.

-Melhor assim, eu estou mesmo meio morto.

-Meio morto? Morto e meio...

Ele levou um susto, a vontade era fugir, se mandar dali, cadê as pernas? Algum feitiço? O chá tinha lhe paralisado as forças e o poder de ação.

-Deixe eu ir, minha mulher era uma vagabunda...

- E precisava matar?

-Sei lá, mas esse negócio de comunista... Ah, não, isso não. Dizem que eles comem criancinhas.

Foi que o misterioso brilho amarelado dos olhos da mulher ficou intenso como duas bolas de fogo, e ela começou a se contorcer numa espécie de transe. Sentou-se à beira da rede, levou as mãos nas feridas e as esfregou com vontade, sem que o homem sentisse um pingo de dor. O sangue volta a brotar e ela avança sedenta para lamber os cortes. Estranhamente há um grande alívio ao ser tocado por aquela saliva anestésica, tão mágica como a dos morcegos hematófagos que tanto perseguiam seu rebanho. Ao mesmo tempo em que se esvaía, veio, repentinamente, uma forte e incontrolável ereção como nunca havia experimentado na vida. Ela se afasta um pouco, deixa cair o vestido de chita e exibe a maravilhosa nudez. O homem continua paralisado, mas logo sente um mar de prazer quando ela monta e cavalga sobre ele.

Com volúpia de fêmea no cio, acelera o ritmo e emite fortes rugidos, sem parar o agito frenético de continuar lambendo o jorro do sangue que já lambuzava o pano da rede. Não saciada, passou a mordê-lo com voracidade e abrir sua carne com unhas afiadas que mais pareciam garras de um bicho. Veio uma dentada mais violenta que lhe atingiu a jugular, e a sensação imediata de entrar num túnel escuro e sem saída. O mesmo que Dalcídio Jurandir descreve como “o escuro crescendo, crescendo até o limite em que tememos encontrar-nos unicamente conosco”, e que seu cérebro pressentiu menos de um milésimo de segundo antes da traqueia ser estraçalhada por poderosos caninos, num arrebatamento indescritível de orgasmo supremo. Fugaz e derradeiro instante de lucidez aquele, o bastante para fantasiar sobre a ilha das mulheres onças, sobre a lenda que corre séculos a respeito desse matagal fechado que demarca a orla da Baía do Guajará. Ilha das Onças, refúgio derradeiro da sua mente antes do desconhecido e da total ausência das preocupações e do sofrimento.